Avanços e desafios do ECA nestes 22 anos

“É preciso que o ECA chegue aos quatro cantos do país abrangendo inclusive outros grupos populacionais, como quilombolas e indígenas, historicamente excluídos desse processo. Muitos falam que o ECA é uma utopia, que é inadequado. Isso não é verdade. O que existem são políticas inadequados que não dão conta de garantir o direito dessas crianças e adolescentes”.

Diário do Pará

Cada criança e adolescente tem o direito de sobreviver e se desenvolver, de aprender, que possam crescer sem violência; que estejam protegidas do vírus HIV/Aids, sendo prioridade absoluta nas políticas públicas. Garantir esses direitos é uma da missões do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no Brasil e que na Amazônia ganha uma dimensão muito maior face aos graves problemas que crianças e adolescentes enfrentam na nossa região.

No último dia 13 o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completou 22 anos. A despeito dos avanços nas conquistas e na redução patente de índices sociais negativos, é fato que ainda há muito o que fazer na defesa das crianças e adolescentes no Brasil.

O Unicef é um organismo parceiro do poder público na implementação de políticas em defesa das crianças e dos adolescentes. O fundo existe em 151 países no mundo e está no Brasil desde 1950, sendo pouco mais de 20 anos na Amazônia, onde mantém três escritórios centrais: o de Belém, com jurisdição nos Estados do Pará, Amapá, Tocantins e Mato Grosso; o de Manaus com atuação no Amazonas, Acre, Roraima e Rondônia; e o de São Luís, abrangendo a plataforma dos nove estados da Amazônia Legal Brasileira. Antônio Carlos Cabral, Oficial de Desenvolvimento Infantil para a Amazônia Legal, falou essa semana ao DIÁRIO sobre o ECA, suas conquistas e seus desafios.

P: Qual o contexto do surgimento do ECA no Brasil?

R: Realmente houve uma mudança para as crianças e adolescentes nesses mais de 20 anos do ECA, mas é bom ressaltar que esse Estatuto não caiu do céu. Surge através de um grande movimento para que nossas crianças e adolescentes saiam da situação irregular para outra de proteção integral. Em 1927 criou-se o Código de Menores que era totalmente assistencialista e repressivo, que era considerado um ser inferior, um pequeno adulto, sem perspectiva alguma e esse código reforçava isso, na medida que afastava esses menores do convívio social e da cidade para uma maior estética da cidade. Existiam os menores normais e os irregulares, que eram os infratores, os viciados, os abandonados… Precisava-se recolhê-los em espaços especiais para que não atrapalhassem o processo de urbanização das cidades. O tempo passou e chegou a época da redemocratização do país na década de 80. Surgiram os grupos dos menoristas, que continuavam defendendo esse código; e dos estatutistas, que queriam mudar essa situação. Em 1988 a nossa Constituição garantiu no artigo 227 a proteção integral com prioridade absoluta do Estado às crianças e adolescentes. Em 1990 surge o Estatuto da Criança e Adolescente, onde se aprofunda mais essa questão.

P: E de lá prá cá, houve realmente melhoras?

R Sim. Houve redução para menos de um quinto da extrema pobreza entre crianças e adolescentes. Houve aumento da expectativa de vida com a redução em 58% da mortalidade infantil; a redução do percentual de crianças desnutridas de 20% para menos de 2%; a redução de 30% nos partos na faixa etária de 10 a 19 anos; a elevação da taxa de escolaridade nos Ensinos Fundamental e Médio. Com o ECA surgem os Conselhos Tutelares que são responsáveis pelo selo ao direito das crianças e adolescentes. Hoje 98% dos municípios brasileiros já contam com esses conselhos, o que é um avanço. Outro grande avanço foi a criação dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente hoje presentes em 91% dos municípios e que formulam e fiscalizam as políticas públicas para as crianças e adolescentes. Não adianta discutir Conselho Tutelar se ele não tem estrutura física adequada e nem carro para exercer as suas atividades e essa é uma luta constante.

P: O Disque-Denúncia para denunciar os abusos contra crianças e adolescentes funciona?

R:Sim. O Disque-Denúncia Nacional, o “Disque 100” que realizou mais de 2,5 milhões de atendimentos e que recebeu ligações de 88% dos municípios brasileiros. Não podemos deixar de citar ainda a criação dos juizados da Infância e da Juventude, os Núcleos Especializados do Ministério Público e da Defensoria Pública, além das delegacias especializadas no atendimento de crianças e adolescentes. Houve também sensível redução no trabalho infantil. Mas o mais importante de tudo foi a mobilização social para essas questões. Ainda precisamos avançar muito para que a sociedade entenda e incorpore o ECA e vejam as crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. O estatuto regulamenta ainda o Sistema Nacional de Atendimento Sócio-Educativo (Sinase), que humanizam as medidas socioeducativas dos jovens que infringem a Lei, transformando a execução dessas medidas em trabalhos integrados com o Judiciário, Executivo e do Legislativo. O sistema traz ainda o Plano Individual de Atendimento (PIA) que é fiscalizada pelo MP e pela Defensoria.

P: E como o Unicef vê o debate sobre a redução da maioridade penal?

R:Existem hoje no Brasil 60 mil jovens cumprindo medidas socioeducativas. Há um estereótipo equivocado de que esses jovens são bandidos. Precisamos ter uma discussão ética e transparente sobre essa questão. Não podemos nos deixar levar pela espetacularização que muitas vezes a mídia faz dos fatos e deixemos de refletir e de entender as origem dessas crianças e adolescentes, que viveram inúmeras formas de violência ao longo da vida, sendo privados de direitos básicos. E isso ocorre nos lares mais pobres e nos mais abastados. Precisamos compreender as circunstâncias e, a partir daí, elaborar novas políticas pedagógicas que coloquem a criança e o adolescente como prioridade.

P: Mas com certeza nesses mais de 20 anos não foram apenas conquistas… Muita coisa ainda precisa ser melhorada…

R:Claro que sim. Os desafios ainda são imensos. Existem ainda 3,1 milhões de crianças e adolescentes de 4 a 17 anos fora da escola no Brasil, além de outras 4,2 milhões dentro do contexto do trabalho infantil de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Hoje em nosso país, a cada mil nascidos vivos, 19,3 morrem antes de completar um ano. O grande desafio mesmo é fazer com que o ECA seja, de fato, aplicado no dia a dia dessas crianças e adolescentes, com os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário trabalhando em rede. Sem essa articulação é impossível termos uma política em defesa das crianças e adolescentes. É preciso que o ECA chegue aos quatro cantos do país abrangendo inclusive outros grupos populacionais, como quilombolas e indígenas, historicamente excluídos desse processo. Muitos falam que o ECA é uma utopia, que é inadequado. Isso não é verdade. O que existem são políticas inadequados que não dão conta de garantir o direito dessas crianças e adolescentes. O ECA possui três dimensões: a legal, da Lei que precisa ser cumprida; a técnica dos que trabalham diariamente com as crianças e adolescentes e a dimensão ética-política que tem a criança e adolescente com uma causa que precisa ser garantida.

P: Qual projeto o Unicef vem desenvolvendo hoje na região Norte e que merece destaque?

R: Trouxemos para a Amazônia em 2009 o programa o Selo Unicef Município Aprovado e implantamos após uma grande mobilização social. A meta é que os gestores coloquem a proteção de crianças e adolescentes como prioridade absoluta. Pactuamos vários indicadores de proteção, de saúde e de educação, entre outros. Demos um prazo de quatro anos para que os municípios conseguissem reverter os índices ruins e estamos em processo final do projeto esse ano e vamos avaliar o desempenho de cada um dos municípios. Inicialmente participaram 100 municípios, mas apenas 40 permaneceram após várias avaliações de cumprimentos de requisitos. Vamos comparar a situação inicial e como está agora dentro das estratégia do selo, melhorando a qualidade de vida das crianças e adolescentes. O mais importante não é receber o selo, mas o surgimento de um olhar diferenciado para suas crianças e adolescentes.

P: O senhor falou ainda há pouco que o ECA precisa abranger as populações excluídas como os indígenas. Há alguma política específica nesse sentido?

R: Estamos focando sim os indígenas na Amazônia. Estamos fazendo um estudo em quatro municípios da Amazônia Legal que possuem a maior população indígena na faixa etária de zero a 12 anos para entender por que há o sub-registro de nascimento nas comunidades indígenas. Aqui no Pará será estudado o município de Jacareacanga. De posse dos dados levaremos aos gestores e para a sociedade para reduzir esse problema. O registro civil é o mínimo para garantir os demais direitos. Outro projeto em comunidades indígenas é o fortalecimento do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional e estamos trabalhando nos nove estados da Amazônia com equipes multidisciplinares de saúde indígena para dar um aporte teórico e prático para os indígenas. Outra prioridade é implantar a Atenção Integrada às Doenças Prevalentes na Infância desses indígenas para reduzir a mortalidade infantil nas comunidades indígenas, cuja média é três vezes maior que a média brasileira. Também fortalecemos a rede de jovens e adolescentes (Rede Mais Pará) que convivem com o HIV-Aids, fornecendo informações para possam entender e combater essa doença, sempre entendendo seus direitos.

http://www.diariodopara.com.br/N-158902-AVANCOS+E+DESAFIOS+DO+ECA+NESTES+22+ANOS+.html

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