“Não tenho medo da morte, porque sei que vou morrer. Tenho medo do amor falso, que mata sem Deus querer”.
Ângela Faria
Manoel Nardy e o mito Manuelzão – personagem que Guimarães Rosa “encantou” em suas páginas – estão entrelaçados em O xale de Rosa, livro recém-lançado pelo publicitário mineiro Pedro Fonseca. Sobrinho “torto” do vaqueiro, ele dedica 514 páginas a seu relacionamento de décadas com o sertanejo humilde transformado em celebridade literária, com direito a participação em programas de TV, minisséries e várias campanhas publicitárias.
O livro de Fonseca se propõe a aproximar os fãs de Rosa do verdadeiro Manoel, o moço que trocou a zona rural de Dom Silvério, na Zona da Mata, pela Fazenda Sirga, na barra do Rio de Janeiro com o Rio São Francisco, incrustada no sertão. Foi dali, da região de Andrequicé, que saiu a comitiva de vaqueiros acompanhada por Guimarães Rosa, em maio de 1952.
Tal qual personagem de romance, Nardy guarda segredos: um deles, “rosiano”, envolve seu nascimento – maldade revelar aqui o mistério. O outro, Pedro esclarece: Manoel deixou a Zona da Mata por causa da traição da mulher com quem se juntara, conheceu Goiás, boa parte de Minas, o estado do Rio de Janeiro e um pouco da Bahia levando gado. Mas não era sujeito sem eira nem beira, como muita gente acredita. Muito menos se trata de cabra fugido – crime de morte nas costas – acoitado nas veredas. Pelo contrário: deixou família na Zona da Mata, buscou a velha mãe para morar com ele e cuidou dela até a morte. Voltou à terra natal por duas vezes: em 1992 e 1996.
O xale de Rosa, na verdade, desdobra-se em vários “livros”, todos marcados pela onipresença de Pedro Fonseca. Um deles conta a vida de Manoel Nardy. Outro traz o relato da comitiva organizada pelo autor, em 2007, para percorrer o caminho de Rosa e Manuelzão na região de Três Marias e Araçaí. No século 21, conduziram a boiada os parentes de Manoel, Zito, Bindoia, Tião Leite, Gregório, Aquiles e de Santana, companheiros da jornada literária de 1952. Nos apêndices, há saborosas entrevistas do tio “torto” e de seus familiares, texto sobre as tradicionais folias de reis do sertão mineiro e fotos.
A vida do vaqueiro, certamente, daria outro livro a Guimarães Rosa. A dupla, aliás, conviveu apenas 19 dias. Muito do que o romancista atribuiu ao personagem não é biográfico: ele nunca foi apaixonado pela nora, como escreveu o autor de “Manuelzão e Miguilim”. O triângulo amoroso jamais existiu, garante Pedro. “Existem teses e mais teses sobre esse falso amor incestuoso”, lembra Fonseca.
Em 1907, Manoel nasceu onde fica o atual município de Sem Peixe (na região de Dom Silvério) e foi registrado pelo tio – a certidão não traz o nome do pai, história enredada no xale do título. Aos 3 anos, Nezinho já andava a cavalo. Desde jovem, diziam que tinha pacto com o diabo e o poder “malino” de se entender com os bichos. Rapaz sanfoneiro e farrista, desmanchou casamento praticamente na porta da igreja depois de um pito do sogro. Deixou a terra natal, sonhava se juntar a Lampião. Encantou-se com a italiana bonitona Rosa Serrano e morou com ela. Traído pela moça, ganhou o mundo.
Aos 34 anos, já relativamente aquietado na região de Cordisburgo (em parte por causa da notícia da morte de Lampião), casou-se com Luísa. Anos depois, perdeu a mulher, ficou com uma penca de filhos para criar, mas não se rendeu ao costume. Recusou-se a entregar as crias para outras famílias. Voltou a se casar em 1955, com Didi. Dramas marcaram a vida familiar do vaqueiro: um filho tomou tiro e a bala se alojou perto da coluna (a imensa barba veio de uma promessa feita nessa época); as filhas se casaram mal; o neto que lhe herdou o nome se suicidou. O velho vaqueiro, conta Pedro Fonseca, quase morreu de paixão quando Milton, o caçula, faleceu devido à peritonite, em 1995. Um mês antes da morte do pai, outro filho, Crispim, se envenenou. Lúcia, neta de Manuelzão, também se matou.
Bruna A vida, entretanto, lhe trouxe muitas alegrias: os amigos, as moças bonitas (era xodó de Bruna Lombardi, que interpretou Diadorim na TV), as comitivas sertão afora e o encontro com Guimarães Rosa. Na década de 1950, o vaqueiro companheiro de jornada do escritor famoso se tornou conhecido por meio de reportagem da revista O Cruzeiro, a mais importante do Brasil. Depois disso, ele passou quase três décadas no ostracismo, vivendo humildemente na região de Andrequicé.
A partir dos anos 1970, virou “celebridade” de novo: fez propaganda de edifício construído em BH, estrelou anúncios de jornal e TV, apareceu em minissérie da Globo, foi bajulado por diretores da emissora, correu o estado em projetos literários, ganhou lugar de honra no palanque de Leonel Brizola e deu nome a projeto ecológico em defesa do Rio das Velhas. Adorou a movimentação, mas gostou, mesmo, foi de visitar pessoalmente Asa Branca e ser apresentado à viúva Porcina e a Sinhozinho Malta.
Muita gente se valeu da lenda do vaqueiro encantado. Manoel Nardy ficou famoso, mas morreu pobre, em 1997, vítima de acidente vascular cerebral. O corpo foi enterrado no cemitério de Andrequicé, ao som do berrante, ao pé de uma sucupira. Encantado lá pelo céu, felizmente ele não teve o desprazer de acompanhar polêmicas envolvendo o seu legado.
A família processou a Universidade Federal de Minas Gerais (e perdeu) pelo uso de sua imagem para batizar o Projeto Manuelzão. As prefeituras de Andrequicé e Cordisburgo disputaram a instalação do memorial em homenagem a ele. Em seu livro, Pedro Fonseca não economiza indiretas ao escritor Olavo Romano e ao médico Apolo Heringer Lisboa, que idealizaram projetos envolvendo o homem que inspirou o personagem de Guimarães Rosa.
Sertanejo sabido, Manuelzão deixou uma frase lapidar para seus “herdeiros”. Ao ser perguntado sobre a indesejada das gentes, respondeu: “Não tenho medo da morte, porque sei que vou morrer. Tenho medo do amor falso, que mata sem Deus querer”.
O XALE DE ROSA
• De Pedro Fonseca
• Instituto Sirga, 514 páginas
• Informações: www.sirga.org.br
http://impresso.em.com.br/app/
Ângela,
O seu texto é lindo e muito fiel ao livro.
Desde que o escreveu estava querendo falar com você, mas não tinha o seu e-mail ou seu telefone.
Quem não ficaria feliz com a certeza de que leu o livro inteiro?
Muito obrigado pela matéria e pela delicadeza com que abordou os assuntos polêmicos.
Mais uma coisa: o livro está fazendo sucesso. Acho que consegui falar uma releitura de Guimarães Rosa através de Manuelzão.
Beijo,
Pedro Fonseca
03199819638