Começo a partir de hoje uma série de artigos que mostrarão alguns momentos dos bastidores dos principais licenciamentos ambientais de hidrelétricas na Amazônia. O processo de Belo Monte será o primeiro a ser esmiuçado. A segunda etapa do licenciamento de Belo Monte, que levou ao início das obras e que podem selar a destruição do rio Xingu, teve início em 2006 e, até abril deste ano, os 35 volumes somaram 6.696 páginas, sem contar as centenas de anexos e imagens.
Rever a evolução desse licenciamento ambiental conduzido pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) tem me feito retroceder no tempo e olhar os fatos sob outra ótica. Vai ser possível expor alguns deles que marcaram momentos escamoteados do crivo da sociedade. Isso pode ajudar a entender como se viabiliza legalmente, no Brasil, a gestação e o nascimento de monstros em forma de projetos de desenvolvimento, que superam nossos piores pesadelos.
Bastidores não tem prazo de encerramento e vai evoluir para contar ao público como enfiaram Belo Monte e outras hidrelétricas goela abaixo da sociedade. Não será um resumo, nem uma análise, mas uma espécie de memória de passagens inusitadas ou curiosas, registradas oficialmente nos milhares de ofícios, pareceres, cobranças, justificativas, notas, questionamentos e, principalmente, em tentativas de dar um “jeitinho” na lei.
A questão indígena tem sido um dos principais temas discutidos no processo de Belo Monte. Os impactos negativos e as violações dos direitos indígenas do projeto têm chamado atenção internacional e contado com uma atuação pífia da Fundação Nacional do Índio (Funai).
No Volume V, páginas 808 e 809, do processo de licenciamento ambiental pelo Ibama, está um ofício da Funai, de 22 de dezembro de 2008, assinado pelo Diretor de Assistência, Aluyzio Guapindaia. Esse ofício trata do acompanhamento do processo de licenciamento da UHE Belo Monte no que tange ao Componente Indígena, pois envolveria diferentes etnias e terras indígenas em várias fases de regularização.
O que mais interessou nesse ofício foi o fato de a Funai classificar a análise dos impactos no Componente Indígena em três grupos distintos: o grupo 1, formado por terras indígenas que seriam diretamente impactadas e, portanto, deveriam ser objeto de trabalhos de campo e levantamento de dados primários para atender ao Termo de Referência – Terras Indígenas Paquiçamba, Arara da Volta Grande, Juruna do km 17 e Trincheira Bacajá; no grupo 2, consideradas no ofício indiretamente impactadas, cujos estudos seriam facultativos, foram elencadas as Terras Indígenas Apyterewa, Araweté do Igarapé Ipixuna, Koatinemo, Kararaô, Arara e Cachoeira Seca; no grupo 3, o ofício esclarece que as comunidades indígenas deverão ser só contempladas com Plano de Comunicação específico, apenas para a etnia Kayapó, para minimizar os impactos psico-sociais herdados do projeto anterior, Kararaô.
O ofício, então, faz referência a um pedido feito pela Eletrobras, membro do Grupo Gestor responsável pelos estudos de impacto de Belo Monte, para remanejar a TI Trincheira Bacajá do grupo 1 para o grupo 2. Para a Funai, segundo a explicação no próprio ofício, a inclusão da TI Trincheira Bacajá no grupo 1 se dera por sua estreita ligação com o rio Bacajá que é a via de acesso ao Xingu e ao uso que as comunidades fazem dele.
A Eletrobras alegou que os estudos na TI Arara da Volta Grande já incluiriam os dados necessários de campo sobre a TI Trincheira Bacajá. A Funai, sem mais delongas, aceitou o argumento da Eletrobras.
Esse ofício comprova que a Funai considerou que Belo Monte iria impactar diretamente três TIs. A informação oficial é preciosa e não foi divulgada na época. Isso nocauteia o discurso mentiroso do governo, da Eletrobras, das empresas e da Norte Energia, de que as terras indígenas da Volta Grande do Xingu não sofrerão impactos porque não serão inundadas pelos reservatórios ou pelas obras estruturais de Belo Monte.
*Telma Monteiro é ativista sócio-ambiental, pesquisadora, editora do blog Telma Monteiro, especializado em projetos infra-estruturais na Amazônia. É também pedagoga e publica há anos artigos críticos ao modelo de desenvolvimento adotado pelo Brasil.
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