Mãe Quelé

Por João Rocha

Um artista popular a batizou Quelé. Canto único. Legítima raiz africana de nossa gente, é objeto de culto, reverenciada com velas, fitas, ex-votos.

Numa casinha em Valença, Estado do Rio, nasceu Clementina de Jesus. Era 7 de fevereiro, talvez 1901. Pai capoeirista e violeiro.

A menina gastava o dia espiando a mãe lavar roupa no córrego atrás da casa. A cantoria inundava tudo: cantos de trabalho, jongos, ladainhas, sambas, modas, corimás.

Quando tinha oito anos, a família foi para a capital. Bairro de Jacarepaguá. Em frente morava João Cartolinha, mestre de pastoril que se encantou com a voz da menina. Foi quem lhe pôs o apelido, Quelé.

Com Cartolinha, chegou a Oswaldo Cruz, reduto de samba e berço da Portela. Lá, mocinha, encontrou grandes do samba: Donga, João da Baiana, Paulo da Portela, Heitor dos Prazeres, Tia Ciata.

Gostava de cantar, mas não lhe ocorria ser profissional. Vivia com prazer o universo de blocos de sujo, ranchos, cordões, corsos. Tornou-se diretora das escolas Unidos do Riachuelo e Índios do Acaú; oradora oficial e princesa da Velha Guarda da Estação Primeira, futura Mangueira. 

Encontro sagrado
Apesar do prestígio, vida dura: doméstica, engomadeira, banqueteira. Dizia que, certa vez, enquanto batia roupa em casa de madame, lhe perguntaram se estava cantando ou miando. Canto único, original.

Num 15 de agosto, 1963, a voz áspera, anasalada, imponente, fisgou Hermínio Bello de Carvalho. Dia de homenagem a Nossa Senhora da Glória. Na centenária igreja do outeiro da Glória, ofereciam preces e cantos sacros; aos pés do morro, na Taberna da Glória, a sexagenária Clementina oferecia jongo, curima, caxambu, partido-alto. O produtor cultural Hermínio viu pela primeira vez, “iluminada em suas rendas brancas”, Quelé cantar. ” Senti que acabava de acontecer algo importante em minha vida.”, disse ele mais tarde.

O encontro marcaria a história da música brasileira. Em Quelé, identificamos nossas mais profundas raízes africanas.

Ciclo Baobá
Sete de dezembro de 1964. Teatro Jovem, Rio. Dirigida por Hermínio, Clementina estréia em público. Tem 63 anos. Precisa de um litro de cinzano para vencer o nervosismo. Elton Medeiros, César Faria e seu filho Paulinho da Viola a acompanham. A plateia ficou de queixo caído.

Três meses depois, volta para o antológico espetáculo Rosa de Ouro.

Ao lado de Aracy Cortes, surge para o grande público. Jornais, revistas, rádios. Todos falam das duas damas que conquistaram o Rio cantando samba.

Começa fulgurante carreira. Rosa de Ouro vira disco. Vieram mais dez. Gravou com Pixinguinha e João da Baiana. Em 1982, a escola Lins Imperial saiu com o enredo Clementina, uma Rainha Negra. Em 1983, no Teatro Municipal, foi homenageada com show do qual participaram Elizeth Cardoso, João Nogueira, Paulinho da Viola, Gilberto Gil e Beth Carvalho, acompanhados pela Orquestra Sinfônica e a bateria da Mangueira.

No final da vida, passou dificuldades. Para complementar a aposentadoria, cobrava o que dessem por apresentações em bares na noite carioca.

Morreu de derrame, em 19 de julho de 1987. Foi velada no Teatro João Caetano, palco de tantas noites de glória. E, ao som do partido-alto Clementina, Cadê Você?, de Elton Medeiros (1965), amigos e admiradores viram-na voltar à terra. Encerrava-se o ciclo que Hermínio chamou de baobá:

[…] aquela árvore africana de largo tronco e cuja folhagem rendilha sombras estranhas, expurgatórias talvez do banzo que sofrem os negros. Banzo que há algum tempo vi nos olhos espelhados da grande Mãe Brasileira.

http://www.almanaquebrasil.com.br/personalidades-musica/6415-clementina-de-jesus.html

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