A criminalização da pobreza, o descaso com o sistema prisional, a conivência com a corrupção policial e o incentivo à violência da Polícia Militar são os pilares da política de extermínio que o Governo do Estado de São Paulo reproduz há décadas, avalia o advogado Rodolfo de Almeida Valente, assessor jurídico da Pastoral Carcerária. Leia e entrevista exclusiva. Por Ana Paula Salviatti e Isabel Harari
Carta Maior – Há relação entre a onda de violência por que passa a cidade de São Paulo e a crescente população carcerária?
Rodolfo de Almeida Valente – São Paulo detém um terço da população prisional do Brasil, com cerca de 190 mil pessoas presas. São aproximadamente 450 pessoas presas por cem mil habitantes, o que coloca São Paulo como o nono estado que mais encarcera no mundo. Aqui, uma a cada 171 pessoas adultas está presa. Apenas nesse ano, temos média próxima a 3.000 pessoas presas a mais por mês no sistema prisional paulista. Essa população crescente é amontoada em um sistema prisional cada vez mais superlotado e degradante, onde campeiam as mais diversas violações de direitos. Nesse cenário, pode-se afirmar que a população carcerária está literalmente acuada.
É preciso notar que as pessoas que povoam o sistema prisional são aquelas mesmas pessoas historicamente alijadas do exercício de direitos básicos nesse estado. São jovens, pobres e negras, geralmente oriundas das regiões periféricas. O sistema prisional está claramente voltado não ao combate da criminalidade, mas à neutralização daquelas pessoas que não interessam ao sistema de cidadania de consumo e de acumulação de riqueza capitaneado pelos poucos de sempre. Não apenas são neutralizadas, como também já são alvo de interesse da iniciativa privada, ávida por receber dinheiro público pela administração de presídios e, principalmente, por auferir grandes lucros com a exploração de mão-de-obra disciplinada e barata. Essa é a lógica material do sistema, apesar do discurso falacioso de combate à criminalidade e de ressocialização. Obviamente, essa manifesta política de encarceramento em massa dos pobres acaba por multiplicar sentimentos de revolta, de segregação e, por conseqüência, reproduz continuamente uma sociedade crescentemente desigual e violenta.
CM – Há alguma motivação específica para o atual cenário de violência e a onda de assassinatos?
RAV – É difícil apontar, sem correr o risco de ser leviano, uma motivação específica. Os ataques de 2006 que culminaram nos ainda não esclarecidos crimes de maio, quando mais de 500 pessoas foram executadas em menos de 10 dias, tiveram como um dos seus principais estopins um achaque praticado pela polícia civil, como evidenciou uma pesquisa da Justiça Global e da Universidade de Harvard. Não surpreenderia se um escândalo similar fosse revelado agora. Certo mesmo é que a política de segurança pública adotada pelo governo de São Paulo, longe de debelar esses massacres, na verdade acaba por fomentá-los. A criminalização da pobreza, o descaso com o sistema prisional, a conivência com a corrupção policial e o incentivo à violência da polícia militar são os pilares dessa política de extermínio que o governo reproduz há décadas.
CM – O número de homicídios praticados pela Rota, grupo de elite da polícia militar paulista, tem aumentado. O novo comandante do grupo é o tenente-coronel Salvador Modesto Madia, nomeado em novembro do ano passado e que foi um dos comandantes do chamado Massacre do Carandiru. Em recente declaração a Folha de S. Paulo, Madia afirmou que não se importa com o número de mortes, mas sim com a legalidade delas. É possível estabelecer um paralelo entre o aumento do número de mortes praticadas pela Rota e uma cultura de extermínio existente na mesma?
RAV – A Rota é o destacamento mais letal da PM, e isso não é uma casualidade. A Rota recebeu esse nome na Ditadura Militar, quando foi reorganizada exatamente para aniquilar militantes contrários ao regime de exceção. Os militares saíram do governo, o Brasil, ao menos formalmente, se redemocratizou, mas a Rota não apenas subsistiu com a sua cultura de exceção, como foi fortalecida pelo governador Alckmin, responsável pela nomeação de Salvador Modesto Madia para o comando desse destacamento. Bom lembrar que Madia carrega nas costas 78 execuções no Massacre do Carandiru, cuja infeliz ocorrência completa, em outubro próximo, 20 anos sem nenhuma responsabilização. Não há mera coincidência aí. Nomear um dos principais responsáveis pelo Massacre do Carandiru para o destacamento mais letal da PM é legitimar esse e tantos outros massacres ocorridos desde a “redemocratização”.
A lamentável declaração de Madia, por sua vez, é claramente uma carta branca para que os policiais sob o seu comando sigam com os massacres perpetrados contra a população periférica, jovem, pobre e negra. Há nisso tudo mais do que uma cultura de extermínio; trata-se de verdadeira política de extermínio adotada pelo governador Alckmin, que também não tem maiores pudores em legitimar as execuções cometidas por seus policiais. Basta lembrar que esse mesmo governador declarou que em São Paulo “bandido tem duas opções: ou é prisão ou é caixão” e, recentemente, afirmou que quem atacar a polícia “vai se dar mal” e que “não recua um milímetro”. Enquanto não desmantelarmos essa estrutura de guerra contra as periferias, contra os pobres, que vigora desde que o Brasil é Brasil e, sobretudo, desde que São Paulo é São Paulo, e que muito se conjuga com o sistema de produção capitalista, em que poucos se fartam com a exploração do trabalho e da miséria da maioria, os massacres contra nossa juventude negra e pobre tendem a continuar.
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