Jogadores e atletas vítimas da repressão entre 64 e 85 esperam revisão da história pela Comissão da Verdade
Larissa Arantes, Murilo Rocha e Thiago Nogueira
Afonsinho, Nando, Reinaldo, Sócrates, Wladimir. Presentes nos álbuns de figurinhas e no imaginário dos torcedores de futebol de alguns dos principais clubes brasileiros durante as décadas de 60,70 e 80, esses jogadores, e também alguns treinadores, como João Saldanha, figuraram na lista de subversivos durante aqueles anos de chumbo, entre 1964 e 1985. Hoje, à luz da Comissão da Verdade, a esperança dessa seleção de marginalizados e de seus familiares é, ao menos, tornar público como a ditadura interrompeu, de forma cruel e quase sempre silenciosa, trajetórias promissoras.
“Senti bem de perto o bafo da intervenção militar no futebol brasileiro. Mas não me arrependo de nada. Fiz a opção consciente”, conta Afonsinho, afastado do Botafogo em 1970 por Zagallo, sob a alegação de seu visual – barba e cabelos compridos – não condizer com o esporte.
A história de perseguição do habilidoso e politizado meia pela ditadura não foi um ato isolado durante aquele período, como mostra, a partir de hoje, uma série de reportagens de O TEMPO. Às vezes velada e em outros momentos explícita, a brutalidade do regime militar mirou o esporte como uma forma eficaz de divulgar sua propaganda e abafar qualquer ato de contestação.
“Os militares investiram pesado na incorporação de órgãos de gestão do esporte, fazendo a ideologia e os métodos deles se propagarem por esses meios. Eles ocuparam cargos estratégicos em confederações nacionais e federações regionais. Havia uma interferência direta”, atesta o doutor em história da Universidade Federal de São João del Rei (MG) Euclides Couto.
A Copa de 70, quando o Brasil conquistou seu terceiro título mundial, e inflados campeonatos nacionais a partir daquela conquista também se transformaram em um instrumento de despolitização da população em meio a um país em uma verdadeira guerra civil.
“O esquecimento, não se pode ter. A sociedade brasileira tem o direito de saber, conhecer sua história nos mínimos detalhes. Isso, a esta altura, se não suficiente, é um bom castigo”, opina o jornalista Juca Kfouri, sobre a necessidade de a Comissão da Verdade recuperar casos ligados também ao esporte.
Alguns atletas prejudicados por adotarem posturas contra o governo militar desconhecem ainda hoje qualquer possibilidade de reparação por danos à vida profissional. “Durante a Copa de 78, quando mantive o gesto de protesto ao fazer o gol na primeira partida, comecei a ser boicotado, até ser sacado no terceiro jogo. A partir daí fui sempre perseguido, inclusive por parte da imprensa reacionária que apoiava os militares”, reclama o maior ídolo do Atlético-MG, o atacante Reinaldo.
“Não sei como esses episódios podem ser reparados de alguma forma. O meu caso era mais simbolismo de uma resistência no esporte”, acrescenta, esquivando de comparar-se a militantes políticos presos, torturados ou até mortos pela ditadura.
Apesar de não ter dúvida sobre a perseguição também a esportistas no regime militar, a presidente do grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro, Vitória Grabois, se mostra descrente com a possibilidade de os trabalhos da Comissão da Verdade, instaurada este ano pela Presidência, trazerem progressos na revisão daquele período. “É preciso que a comissão seja mais transparente e que ocorra, de fato, a abertura de todos os arquivos da ditadura”.
Minientrevista: Nilmário Miranda
Apareceu pelo menos um caso de um jogador de futebol, o Nando Coimbra, irmão do Zico. Ele foi publicamente anistiado quando a comissão foi ao Ceará, onde o Nando jogou.Além dele, você se lembra de algum outro caso de esportista analisado pela Comissão?
Anistiado, foi só ele, muitos outros foram perseguidos. Tem o caso do Afonsinho, que era de oposição à ditadura, o Sócrates, que tinha claras posições democráticas e de esquerda, e também o Reinaldo, que participou da campanha das “Diretas Já”, por exemplo.
Há uma explicação para haver apenas um esportista anistiado?
Os atletas eram pessoas muito conhecidas e, caso fossem duramente perseguidos pelos agentes de repressão, como foram muitos dos estudantes e civis, isso acabaria virando contra a ditadura. O regime sabia que não poderia correr esse risco.
Mas a ditadura acabou utilizando o esporte em benefício próprio, não é?
O esporte foi usado pela ditadura, sobretudo o futebol, na Copa do Mundo de 70, ano marcado pelo auge da repressão. O mundial foi usado descaradamente pelo regime para desviar a atenção e para justificar também a barbárie.
A Comissão da Verdade vai revelar o que atletas sofreram durante a ditadura?
O Estado tem obrigação de revelar a verdade, reparar moralmente e até financeiramente as vítimas da tirania. O processo agora é irreversível. O país está descobrindo que o direito à verdade é um direito irrenunciável.