Helena Mader – Correio Braziliense
Brasília – Cartas violadas, lixeiras reviradas e olhares observadores eram parte da rotina do jornalista francês Charles Vanhecke, correspondente do jornal Le Monde nos anos 1970. O repórter sabia das restrições impostas pela ditadura, mas tentava driblar o controle para revelar à Europa a realidade brasileira durante o regime militar. Ele agia de forma diplomática, sem entrar em confronto com os generais. Ainda assim, era um alvo constante da polícia. O que Charles Vanhecke não sabia é que o governo brasileiro cogitou até a sua expulsão. O jornalista francês era visto como integrante do movimento comunista. “Nunca imaginei que eles pensaram em me colocar para fora do país, nem sabia que era considerado um opositor ou comunista”, revelou Charles ao Estado de Minas.
Documentos guardados no Arquivo Nacional e localizados pela reportagem mostram que correspondentes estrangeiros dos principais jornais do mundo eram vistos como inimigos pela ditadura militar, que por várias vezes analisou a possibilidade de expulsá-los do território brasileiro. Os arquivos, à época secretos, foram divulgados graças à Lei de Acesso à Informação, sancionada no fim do ano passado.
Além de Charles Vanhecke, a repórter Marvine Herietta Howe, do New York Times, também motivou a produção de dezenas de dossiês. “São obscuros os objetivos e propósitos a que se serve a senhora Howe, bem como os motivos dessa constante indisposição contra o Brasil”, diz o trecho de um relatório sigiloso elaborado pela extinta Divisão de Segurança e Informações (DSI).
Os dossiês disponíveis no Arquivo Nacional mostram que os militares viveram um dilema. Alguns defendiam a expulsão sumária dos correspondentes do Le Monde e do New York Times. Outros temiam a repercussão internacional negativa que a medida traria. “Sugerimos, neste momento em que jornais brasileiros são levados à Justiça por publicarem notícias inverídicas, que os jornalistas Marvine Henrietta Howe e Charles Vanhecke sejam convidados a deixarem o território nacional, pelo mesmo motivo”, diz trecho de um documento da Divisão de Segurança e Informação.
Mas uma facção do governo sabia do poder e da influência do New York Times e relutou em colocar para fora a correspondente americana. Com relação ao jornalista francês Charles Vanhecke, as dúvidas suscitadas eram as mesmas. “A sua conduta é considerada contrária aos interesses nacionais pelos órgãos de segurança e informação. É passível de expulsão. Entretanto, dada a repercussão que tal medida causaria dentro e fora do país, foi proposta uma nota consulta ao excelentíssimo senhor presidente da República”, diz um documento do Ministério da Justiça, datado do início de 1979 e assinado por um assessor do governo.
Antes mesmo de o questionamento chegar às mãos do então presidente Ernesto Geisel, os órgãos de informação souberam que Charles Vanhecke havia deixado o país voluntariamente. “O alienígena supracitado foi transferido para Madri/Espanha, onde exerce as atividades de correspondente do mesmo jornal”, relata um ofício encaminhado ao Ministério da Justiça ainda em 1979.
Ofícios Antes que Charles Vanhecke deixasse o país, seus artigos tiraram o sono de muitos militares e motivaram a elaboração de dezenas de ofícios durante os quatro anos em que o francês permaneceu em território brasileiro. Um dos textos do Le Monde que causaram desconforto é datado de julho de 1974. Nele, Charles Vanhecke relatava a existência de “prisões arbitrárias e maus tratamentos nas cadeias”. A reportagem falava sobre o desaparecimento de políticos e de estudantes e citava, inclusive, a prisão do então aluno da Universidade de Brasília Honestino Guimarães.
O documento 761/76, da Divisão de Segurança e Informação, informa que o jornal Le Monde de 20 de agosto de 1976 publicou notícia de Charles Vanhecke “na qual consta que os órgãos de segurança brasileiros mataram 10 membros do CC/PCB, além de terem torturado e preso muitos outros”. O ofício diz que o correspondente, “num flagrante desrespeito ao país que o acolheu e às regras de boa conduta profissional, difama o Brasil no exterior, baseando-se e fazendo referência em seu artigo ao jornal clandestino do PCB, Voz Operária, de abril de 1976, o que comprova suas ligações com a subversão comunista e torna indesejável sua permanência no país.”
Em 28 de março de 1975, o Le Monde publicou uma reportagem intitulada “Brasil: prisões, torturas, desaparições. Intensifica-se a repressão contra o partido comunista”. Foram traduzidos os trechos considerados mais importantes, como o que afirma que 27 pessoas foram condenadas no Brasil por atividades consideradas subversivas” e todas afirmavam ter sido torturadas. Advogados de quatro dos presos afirmaram que seus clientes haviam sido mortos na prisão por conta de “sevícias”. “A prisão de jornalistas e advogados indica que a repressão contra o Partido Comunista e seus simpatizantes se intensifica”, declarou o repórter.
Nesse mesmo ano, a Divisão de Segurança e Informação enviou ofício ao Ministério da Justiça para lançar novo alerta sobre as atividades da jornalista Marvine Henrietta Howe, correspondente do New York Times. Os militares elaboraram uma nova ficha, que dizia que a repórter norte-americana nasceu na China, era solteira e vivia no Centro do Rio de Janeiro. O dossiê afirma que Marvine chegou ao Brasil em outubro de 1972, com um passaporte expedido no Líbano.
Antagonismo
O levantamento acerca das atividades da jornalista americana diz que em seus textos “verifica-se uma invariável deturpação e uma constante animosidade contra o Brasil, seu regime político e seu governo”. Segundo o relatório do regime militar, no trabalho de Marvine, “fatos, decisões, acontecimentos de toda ordem são apresentados sob a luz de um constante e impiedoso antagonismo contra todos que tenham responsabilidade na implementação do modelo sócio-político brasileiro e contra medidas de política externa do continente”.
Saiba mais: LEI de acesso
Em vigor desde 16 de maio, a Lei de Acesso a Informação obriga órgãos públicos a prestarem informações sobre suas atividades a qualquer cidadão interessado. As únicas informações sigilosas, segundo o texto da lei, são assuntos secretos do Estado, temas que possam colocar em risco a segurança nacional ou que comprometam atividades de investigação policial. Pela lei, os pedidos devem ser respondidos em até 20 dias, prorrogáveis por mais 10. Se as informações não forem disponibilizadas pelo órgão, quem fez o pedido pode entrar com recurso à direção e, em segunda instância, recorrer à própria Controladoria Geral da União (CGU), quando se tratar de documentos relativos ao governo federal. O tempo médio de atendimento tem sido de nove dias, enquanto nos Estados Unidos é de 100 dias.
http://www.em.com.br/app/noticia/politica/2012/07/15/interna_politica,306094/documentos-mostram-que-jornalistas-estrangeiros-foram-vigiados-na-ditadura-do-brasil.shtml#.UAK3i9GJyO8.gmail. Enviada por José Carlos.