No aglomerado Santa Lúcia e na vila Acaba Mundo, moradores vivem drama da miséria
Por Joelmir Tavares – Jornal O Tempo; Fotos: Douglas Magno
Não mais que 150 m separam um mundo do outro. A avenida Nossa Senhora do Carmo, uma das principais de Belo Horizonte, serve de fronteira entre o aglomerado Santa Lúcia e o bairro Belvedere, ambos na região Centro-Sul. De um lado, na vila São Bento – uma das cinco favelas do aglomerado -, a rua é de terra, com becos que levam a frágeis casas de alvenaria e pequenos barracos com paredes de madeira e papelão, cobertos de telhas de amianto. Na outra parte, no bairro mais nobre da cidade – onde o metro quadrado chega facilmente a R$ 10 mil -, ruas asfaltadas são margeadas por mansões com piscina e carros importados na garagem.
“O Belvedere não tem favela”, repetem corretores interessados em vender imóveis no local. Pode ser que esteja pouco visível, mas a pobreza é vizinha do bairro, sim. E ela faz limite também com mais endereços valorizados da Centro-Sul. São Bento, Serra, Mangabeiras e Sion são outras áreas das classes média e alta cercadas por vilas onde ainda há miséria extrema.
Os prédios e as casas chiques que muitos pobres enxergam pela janela são a imagem de uma vida que nunca experimentaram. Mesmo assim, o sorriso surge. “Sou feliz aqui”, diz a aposentada Zilda Imaculada Messias, 60, enquanto arruma latinhas de alumínio e garrafas PET. Ela cata e vende os materiais para ajudar o marido – que recebe um salário mínimo de aposentadoria – no sustento da casa, onde o casal mora com um dos oito filhos.
Moradora antiga da vila São Bento, ela raramente atravessa a Nossa Senhora do Carmo. Quando vai ao Belvedere, sente vontade de ter “tudo arrumadinho” como lá. “Bom aqui não é não”, conforma-se, olhando para edifícios dos bairros São Bento e Santo Antônio, que ficam no lado oposto da favela.
Zilda não passa fome. Nem os quatro filhos e o punhado de netos dela que moram perto. Na casa de chão batido da aposentada, vulnerável a enchentes, o banho é com canequinha. As redes de água e energia são clandestinas. Se ligar chuveiro, a luz cai. Também é assim no casebre de madeira e lata onde mora uma das filhas, Luzia do Carmo Messias, 42. Desempregada, ela se vira como pode para sobreviver. Dentro do inclinado barraco, falta o básico: mantimentos, banheiro adequado; dignidade.
Um vizinho, o pedreiro Valnei Antônio da Silva, 39, resume o sonho dos habitantes da vila São Bento. “Eu queria ter um endereço. Ser gente, né?”, diz. Para receber cartas e encomendas, os moradores contam com a boa vontade de comerciantes próximos que têm endereço oficial.
Tristeza e choro. Em outro morro da região Centro-Sul, a vila Acaba Mundo, que fica entre Sion, Mangabeiras e Belvedere, uma mãe de família olha, desolada, para dentro do minúsculo barraco escuro onde mora com os filhos trigêmeos, Cauã, Ruan e Luan, 4, e as filhas Carla, 14 – que está no sexto mês de gravidez – e Rosimara, 12. “Às vezes, sento na cama e choro”, diz Marileide Ferreira dos Santos, 37, com a voz embargada.
A comida é escassa, e a pobreza compõe o cenário. Os R$ 230 que ela recebe do programa Bolsa Família são a única renda mensal fixa. O que completa o orçamento da família são os R$ 70 que Marileide ganha quando faz faxina em bairros próximos. Como precisa cuidar dos trigêmeos, que não frequentam creche ou escola, nem sempre ela pode sair para trabalhar. Soltos, os meninos correm, brincam, riem. A ternura das crianças é o oposto da dureza do mundo ao redor.
Capital tem 46 mil moradores sem renda, segundo IBGE
Outras 15.856 pessoas (0,6%) vivem em imóveis com renda per capita de até R$ 70 por mês. O Censo não levantou quantos dos habitantes nas duas faixas de renda moram em favelas, mas se sabe que a concentração de pobres nesses locais é alta.
O abismo social entre vilas e regiões nobres é responsável por conflitos. A proximidade com uma favela pode desvalorizar em até 30% um imóvel em um bairro, segundo o especialista imobiliário Kênio de Souza Pereira. “O medo da violência é a principal causa”, diz.(JT)
Vida melhora a passos lentos
A preocupação de mostrar que favela não é lugar só de pobreza e criminalidade faz parte do discurso de muitos moradores das vilas e dos aglomerados de Belo Horizonte. Além do contraste com bairros próximos – como é o caso do aglomerado Santa Lúcia e da favela Acaba Mundo, ambas na região Centro-Sul -, as diferenças podem ser vistas até dentro da própria comunidade. Existem barracos de madeira e famílias em condições precárias, mas também há casas bem-acabadas e pessoas que romperam o ciclo da pobreza. Antenas de TV a cabo, por exemplo, são comuns. Dá para achar até piscina e sauna.
Na casa de dois andares onde a aposentada Terezinha Fernandes de Souza, 65, mora com quatro filhos e uma neta, o dinheiro é curto – cerca de R$ 1.000 das aposentadorias dela e do marido, já falecido -, mas garante certo conforto. Terezinha tem aparelho de micro-ondas, som, televisão, geladeira e telefone. “Já cheguei a passar fome”, relembra. Há 60 anos na vila Santa Rita – uma das cinco favelas do aglomerado Santa Lúcia -, ela gasta quase R$ 300 por mês com remédios e ainda ajuda os filhos.
Não é de agora que as favelas recebem mais atenção do governo. Entidades também desenvolvem atividades nos morros. Apesar do pouco que ainda é feito, as políticas habitacionais e os programas de transferência de renda promovem transformações. “Os avanços chegam, mas o poder público ainda prioriza as áreas mais vistas, como o centro e os bairros nobres”, diz a líder comunitária do Acaba Mundo, Generosa Costa de Oliveira.
Para o aposentado Delfino Alves de Souza, 73, que construiu sua história na favela vizinha da praça JK, no Mangabeiras, a força de vontade é combustível para vencer a pobreza. “Cheguei sem nada, há mais de 30 anos. Trabalhando, consegui progredir”, afirma. A casa dele, com dois andares, é uma das mais caprichadas do entorno. “A vida é dura para quem é mole”, diz.
Perto dali, a auxiliar de cozinha Tânia Regina Galisa, 43, criou os nove filhos – o mais novo tem só 2 anos – em um barracão de um cômodo. Faz pouco tempo que, graças à ajuda da associação de moradores, ela conseguiu construir mais três quartos, que ainda estão sem acabamento. Com o salário mínimo que a mãe recebe e os R$ 160 do Bolsa Família, a família vive sem luxos, mas tem as necessidades básicas atendidas. “Minha vida já foi bem pior”, diz Tânia.
Urbanista fala em “segregação espacial”
“A segregação espacial entre áreas de pobres e de riscos prevalece”, acredita a arquiteta e urbanista Cláudia Pires. Segundo ela, ainda há quem pense que as favelas têm que acabar e que os moradores devem ser levados para longe. “Existe uma pressão constante para retirar as famílias”, explica.
A prefeitura diz que prioriza a urbanização das áreas e a manutenção dos moradores na região onde vivem. “Nossa política é a de inserção das famílias na cidade”, diz a diretora de planejamento da Companhia Urbanizadora e de Habitação (Urbel), Maria Cristina Magalhães.
O programa Vila Viva deve chegar neste ano ao aglomerado Santa Lúcia, com investimentos de R$ 124,5 milhões. Nas vilas São Bento e Esperança, 319 famílias vão se mudar para prédios que serão construídos perto do local onde vivem hoje. Já o Acaba Mundo não está incluído no Vila Viva. (JT)
http://www.otempo.com.br/noticias/ultimas/?IdNoticia=207545,OTE. Enviada por José Carlos.