Tadeu Breda
“Se precisar, a gente vai pro pau”, diz Maria Elisete Barbosa de Sousa, uma das três pessoas que se revezam na portaria do edifício Mauá, no centro de São Paulo, ocupado por três movimentos sem-teto desde 2007. Por ali circulam diariamente cerca de mil pessoas. “Conheço todos”, diz Elisete, garantindo: “Aqui só entra morador.” Sua memória fotográfica é uma das armas da coordenação para evitar problemas com visitas indesejadas – mas não a única.
Há mais ou menos dois anos, a assembleia dos moradores decidiu pela instalação de câmeras de vigilância. São oito no total: uma na rua, uma na portaria e mais uma em cada um dos seis andares do prédio. Elisete ocupa o posto das sete da manhã às sete da noite, quando é substituída por um colega. A porteira explica que as câmeras servem para quando alguém apronta e ninguém vê: Elisete já cansou de ver morador descumprir o regimento interno e, depois, tirar o corpo fora. “Com a câmera, a gente pega direitinho. Eu monitoro tudo por aqui e passo qualquer problema pra coordenação.”
As regras na ocupação Mauá são rígidas, e algumas não podem ser infringidas de jeito nenhum. Usar drogas, por exemplo, está terminantemente proibido – e dá expulsão. “Pegou usando? Alguém viu? É rua”, explica Ivaneti Araújo, 39, militante do Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC) desde 1998 e coordenadora geral do edifício. “Só que a gente não exclui ninguém: é a pessoa que está se excluindo, porque a assinatura das famílias mostra que estão de acordo com as normas.”
O monitoramento e as leis internas não isentam a vida dos sem-teto de confusões e desentendimentos. De pequenas discussões até arranca-rabos, há de tudo. Os ocupantes da Mauá costumam dizer que são uma grande família – como toda família, sofrem, riem, se divertem e também brigam juntos. “Mas não toleramos violência, tipo puxar a faca um pro outro”, delimita Ivaneti. “Se afrouxamos, perdemos o controle. Tem que ter pé das coisas, respeitar e reivindicar respeito.”
O sistema é rigoroso porque nem todos os integrantes do movimento compartilham os ideais da luta. Nem todo mundo tem consciência de que a ocupação não é apenas um lugar pra fugir do aluguel. Muitos não se preocupam em tomar partido na limpeza, instalação elétrica, reparos no encanamento e todos os afazeres para que um prédio abandonado volte a pulsar. “Quando convocamos um mutirão, se tem cem pessoas, 30 comparecem”, lamenta Ivaneti.
Mesmo assim, os sem-teto são especialistas em transformar carcaças urbanas em condomínios plenamente habitáveis: saem os ratos, baratas e entulhos, entram seres humanos. “Quando a gente vai ocupar um prédio, já chegamos com equipes montadas: tem uma turma que vai cuidar da fiação, outra que vai atrás dos encanamentos”, orgulha-se Manuel Pedro dos Santos Filho, 40 anos. “Geralmente, uma hora depois já tem água e energia elétrica.”
Manuelzinho, como é conhecido, é um dos responsáveis pela manutenção do edifício Mauá. Está no MSTC há dez anos e sabe exatamente o que tem que fazer pra dar condições mínimas de moradia a um imóvel detonado. “O primeiro passo é procurar o relógio de água”, ensina. “Achando o relógio, já sabemos onde fica a rede.” Então é preciso cavar, quebrar o chão mesmo, dentro do prédio e na calçada, até chegar ao encanamento. Algumas “pecinhas” adaptadas pelos sem-teto burlam os bloqueios da Sabesp e a água segue seu curso.
Nos primeiros dias, a ocupação Mauá funcionou com apenas uma torneira. Ficava no térreo e servia à necessidade de higiene e cozinha de todas as 237 famílias. Agora, todas as lavanderias e os banheiros – pelo menos quatro por andar – possuem água encanada. Inclusive na cobertura, porque, com a contribuição dos moradores, a coordenação conseguiu comprar uma bomba e duas caixas d’água de 30 mil litros.
Mas a solução de um problema trouxe outro, e vieram os entupimentos. “Tivemos que refazer toda a hidráulica do prédio”, conta Manuelzinho, “encanamento, caixa de esgoto, tudo novo.” A sala onde hoje ocorrem as reuniões e assembleias do prédio – e onde ficava a única torneira de toda a ocupação – tem o chão todo remendado. Uma faixa de cimento sobre o antigo piso quadriculado mostra o caminho da rede de esgoto que, graças aos moradores, extinguiu os entupimentos.
Se a coletividade não participa, não vai às assembleias, não arregaça as mangas, nada acontece. “As pessoas que se recusam a colaborar perdem pontos com a coordenação”, assevera Ivaneti. “Todas as participações e ausências são contabilizadas.” O resultado é que as famílias menos assíduas nas tarefas coletivas ficam pra trás na fila do benefício habitacional, e demorarão mais tempo pra conseguir vaga nos programas que o movimento consegue emplacar em parceria com os governos municipal, estadual e federal.
A casa própria ainda é sonho pra maioria dos sem-teto, mas pra alguns já se transformou em realidade – ou melhor, numa realidade dividida em 300 prestações a serem quitadas ao longo de 25 anos, com apoio da Cohab ou da CDHU. Prova de que nada vem de graça. “Nós queremos pagar, mas de acordo com nossas possibilidades”, diz Ivanilda Rodrigues de Sousa, 32, que recebeu a carta de crédito em 2010 e se mudou da ocupação Mauá pra uma quitinete na Rua Riachuelo, perto da Praça da Sé. Mas não canta vitória antes do tempo: prefere se definir como “uma feliz quase-proprietária”.
Apesar de já estar financiando sua casa, Ivanilda não abandonou o movimento. Vai diariamente ao edifício na Rua Mauá pra ajudar a luta de quem ainda não recebeu o benefício. É a coordenadora do sexto andar e também um exemplo para muita gente que pensa em desistir.
“Tem gente que chega muito desacreditada, arrebentada, com a vida econômica destruída”, diz. “Nós ficamos pra dar uma força e mostrar que a luta é válida e verdadeira.” No caso de Ivanilda, foi uma batalha árdua. A carta de crédito veio após oito anos de militância, foi sofrida – mas veio. Sua jornada incluiu tantas ocupações e desocupações que já perdeu a conta: esteve inclusive numa ação do movimento que ocupou um Batalhão da Polícia Militar. Também passou uma temporada de quatro meses morando na rua.
Mas é recente essa história de coordenador ser beneficiado em programas habitacionais. A maioria das lideranças costumava ceder sua vez na fila pra famílias mais necessitadas. Permanecer sem-teto também é uma maneira de não abandonar a militância. “Se não estiver passando a realidade com eles aqui, vou acabar não me dedicando tanto como me dedico hoje”, prevê Jirlaine Sousa Braga, 36, coordenadora do terceiro andar. “É uma questão de praticidade. Num dia chuvoso, iria pensar duas vezes antes de vir pra cá.”
Nem todos concordam. Manuelzinho conta que já brigou com muito coordenador-cabeça-dura que se negava a aceitar a carta de crédito. Seu raciocínio é bastante simples: como atrair novos integrantes ao movimento se, mesmo depois de anos lutando, as lideranças continuam sem-teto?
“Comecei a insistir que eles tinham que ser beneficiados, assim como eu fui.” Agora, quando vai às reuniões de base, Manuelzinho convida o pessoal pra ir ao seu apartamento, no Canindé, Zona Norte de São Paulo. “É uma maneira de mostrar que a luta é árdua, é dura, mas tem vitória.”
A ocupação Mauá tem pelo menos uma família que está de malas prontas paro a casa própria. Kelly Cristina é mãe de três filhos e cuida de mais três sobrinhos, tudo sozinha. “É nossa guerreira”, sorri Ivanilda. Muito em breve, Kelly irá pra Guaianazes, na Zona Leste, em um projeto da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional Urbano) .
Os dois apartamentos que ocupa com seis crianças serão preenchidos pelo grupo de base: gente que já entrou para o movimento, mas ainda não teve oportunidade de participar de nenhuma ocupação. Moram na rua, em cortiços ou destinam quase toda renda mensal para o aluguel. São o exército de reserva recrutados à força pela especulação imobiliária, mas que têm a opção de se alistar ao movimento e contornar a situação. Como diz Ivaneti: “Quem não luta, tá morto”.
http://www.latitudesul.org/2012/07/03/ocupacao-sem-teto-tem-regimento-interno-e-cameras-de-vigilancia/