Relatora da ONU para o direito à moradia ainda acredita que os preparativos para Copa e Olimpíadas no Brasil podem ser feitos sem violação dos direitos humanos. E aponta o caminho para isso
Érico Firmo
Raquel Rolnik é uma das maiores autoridades da academia e da gestão pública brasileira no campo do urbanismo. Professora universitária há mais de 30 anos, foi diretora de Planejamento de São Paulo na gestão Luiza Erundina (1989-1992) e prestou consultoria a várias cidades latino-americanas. Participou da criação do Ministério das Cidades, e foi secretária de Programas Urbanos da pasta entre 2003 e 2007. Foi o período em que começaram a ser colocadas em prática as diretrizes do então recém-aprovado Estatuto das Cidades.
Em 2008, foi eleita relatora da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Direito à Moradia Adequada.
Indicada pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, seu trabalho não é voltado apenas para o Brasil. Ela é a relatora mundial sobre o tema e tem autonomia em relação ao governo brasileiro e à própria ONU. Seu papel é monitorar a garantia dos direitos humanos ratificados pelos países membros.
Logo ao iniciar seu trabalho, deparou-se mundo afora com aquilo que veria mais tarde em seu país: denúncias de violação do direito à moradia durante a preparação para grandes eventos esportivos. Na África do Sul, que organizava a Copa. Na China, que era sede olímpica. E na Índia, que receberia os jogos da comunidade britânica.
Nos vários casos, Rolnik constatou que os alvos prioritários das remoções eram pessoas sem títulos de propriedade registrados em cartório: favelas, ocupações, assentamentos informais, irregulares. O que, nesses países, constitui a maior parte do território popular das cidades. E por uma característica comum entre eles, onde a população mais pobre produziu a própria moradia, com as condições de que dispunha.
A escolha para sede da Copa e das Olimpíadas fez com que o trabalho se voltasse para o Brasil. E começou a constatar violações da mesma natureza. Inclusive, com desrespeito a tratados internacionais ratificados pelo governo e em conflito até com a Constituição.
No entanto, ela é otimista. Acredita que é possível, ainda, fazer a Copa e as Olimpíadas sem desrespeitar as comunidades carentes. Rolnik aponta que já houve avanços significativos em Porto Alegre (RS), no Rio de Janeiro e acredita que o cenário é promissor em Fortaleza. Afinal, alerta: “A gente não pode ter um legado da Copa do Mundo com violações dos direitos humanos para fazer isso”.
O POVO – A senhora foi indicada relatora da ONU para o direito à moradia quase simultaneamente à escolha do Brasil para sede da Copa do Mundo (2014) e das Olimpíadas (2016).
Raquel Rolnik – Exatamente. Assim que eu assumi, comecei a receber muitas denúncias de violações de direitos humanos de cidades que estavam se preparando para receber um megaevento esportivo. Na época, era a África do Sul. E também na China, Pequim, nas Olimpíadas (2008). Naquela época, ainda, de Nova Délhi, na Índia, que estava se preparando para os Commonwealth Games, os jogos da comunidade britânica (2010). Comecei a ver que, em todas essas situações, havia muitas denúncias de violação dos direitos à moradia adequada. Principalmente remoções.
OP – Como essa experiência anterior balizou o trabalho desenvolvido agora no Brasil?
Rolnik – Eu apresentei um relatório temático à ONU. Em 2009 ainda eu preparei esse relatório sobre os megaeventos esportivos e o direito à moradia. Me correspondi com o Comitê Olímpico Internacional (COI). Procurei contato com a Fifa. Não consegui. Mas com o Comitê Olímpico, trabalhamos juntos. Apresentei esse relatório e o conselho votou resolução específica dizendo: países que se preparam para grandes eventos esportivos têm de respeitar o direito à moradia, colocando uma série de questões que precisam ser respeitadas.
OP – Há um perfil ou um padrão específico nas remoções no Brasil e em outros países?
Rolnik – Quando a gente fala de África do Sul, quando a gente fala de Índia e quando a gente fala de Brasil, percebemos imediatamente que o grande alvo das remoções são comunidades que não têm títulos individuais de propriedade registrados em cartório. Isso, em si, já é uma situação discriminatória, e a discriminação é uma violação dos direitos humanos. Ou seja, o alvo principal foi todo tipo de assentamento informal, irregular, semilegal, ocupações, favelas. Que, na verdade, tanto no Brasil, quanto na África do Sul, como na Índia, é a maior parte dos territórios das cidades. E, sobretudo, a maior parte do território popular das cidades. E em países onde a população autoproduziu sua própria casa.
OP – Remover essas pessoas, por outro lado, tem custo político. Só a discriminação explica isso? Qual o fundamento pelo qual elas são transformadas em alvo?
Rolnik – Explica-se a partir de pressuposto que é totalmente equivocado, de que, se há pessoas que não têm título individual de propriedade registrado no seu nome, uma escritura registrada no cartório, sai mais barato. Sai mais barato, ou não tem problema nenhum, porque essas pessoas não têm direito mesmo de estar ali. Isso é totalmente equivocado.
OP – O direito à moradia está acima do aspecto legal, oficial?
Rolnik – Do ponto de vista dos direitos humanos, são duas as cartas legais internacionais sobre isso. A Declaração Universal dos Direitos Humanos e no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos Sociais e Culturais. Tal como está lá, a moradia é um direito humano. É da pessoa. Independe se ela é posseira, se é proprietária, se é locatária, se está vivendo de aluguel, se está vivendo numa casa cedida. É direito de todas as pessoas. Não exclusivamente daqueles que são proprietários. Nesse sentido, é uma visão muito equivocada. No Brasil, é particularmente equivocada. Porque, além desse marco internacional, desde a Constituição de 1988, temos o reconhecimento do direito de posse da moradia daquelas famílias que têm situação que não é de títulos individuais registrados em cartório. Porque têm renda baixa, ocupa até 250 metros quadrados de terreno para sua moradia. Ou seja, está definido claramente na Constituição brasileira que a condição de posse dessas pessoas tem de ser reconhecida. Ao não reconhecer isso, estamos cometendo dupla violação – no campo do direito internacional e no campo do direito nacional.
OP – O processo brasileiro se dá após a aprovação da resolução da ONU. Isso representou avanço em relação aos outros países?
Rolnik – Na verdade, na China há um problema tão grande de informação que é difícil saber exatamente o que aconteceu. Nos países com democracia mais desenvolvida, como é a África do Sul, a Índia e o Brasil, a gente fica sabendo muito mais o que se passa. Eu diria que começamos a reproduzir esse modelo no Brasil, também. Foi pra mim uma surpresa muito grande, sabendo que na Constituição nós reconhecemos os direitos de posse, sabendo que no Brasil nós construímos toda uma legislação para proteger esses direitos. Sabendo da luta histórica de moradores de assentamentos populares para serem urbanizados, receberem infraestrutura. História de 30 anos de luta e conquista, da qual eu tenho maior orgulho. Agora, temos dinheiro para pagar essas promessas e dizer: vamos consolidar esses assentamentos, vamos possibilitar que todos tenham moradias dignas. De repente, essas questões todas não valem mais. E aí a gente está vendo o procedimento. Não apenas em Fortaleza. É praticamente um padrão que se observa nas cidades em processo de preparação para receber a Copa. Padrão que viola o direito à moradia adequada em vários pontos.
OP – Mas as pessoas não podem ser desapropriadas sem violar esses direitos? Há casos em que a remoção pode ser positiva até para as famílias, que nem sempre vivem em condições adequadas.
Rolnik – É muito importante entender que a remoção, em si, não é uma violação. A grande questão é como ela é feita.
OP – E como deve ser feita?
Rolnik – Definimos diretrizes bem claras, no campo do direito à moradia, sobre como fazer remoções respeitando os direitos humanos. Brevemente, o que tem de ser obedecido, para fazer como se deve, uma pergunta que esse projeto tem de responder é se ele fez tudo que pôde para evitar ou minimizar. A remoção sempre é um trauma. Para idosos, para crianças. Muitas vezes implica em depressão, morte. Estamos falando de arrancar uma pessoa de sua raiz. Arrancar do lugar em que ela vive há 40, 50 anos. Onde ela tem lar. Então, sempre, a primeira questão é minimizar. Às vezes, você muda o projeto três metros para esquerda, ou três metros para a direita e evita tirar 10 casas. Tudo que você minimiza já é melhor. Ou evita ou minimiza. Infelizmente, o que sinto é que os projetos, ao invés de serem pensados assim, são pensados: “Onde que é mais fácil passar por cima?” Pum. “Ah, é em comunidade de baixa renda, eles são ilegais mesmo. Então vamos que vamos”. Então, desvia do motel, desvia do prédio de apartamentos, desvia de um terreno vazio, mas vai por cima das comunidades. Isso é a primeira coisa que não pode ser. E o projeto tem de passar por processo de discussão pública. Esses projetos da Copa não foram debatidos amplamente. É fundamental o direito à discussão, à participação. Direito, também, à informação. Coisa muito grave que observei em várias cidades e estou observando aqui em Fortaleza é as famílias dizerem assim: “Um dia, eu estava em casa, almoçando, entra um cara de uma empresa terceirizada e pinta a minha casa com um número. E fala: ‘Vim aqui medir para calcular a indenização’”. Ninguém nem tinha falado que ele ia ser removido. É um desrespeito e uma violação do direito à informação, à participação. Outro aspecto que também tem de ser feito de outro jeito são as alternativas à remoção. Se você já estudou, minimizou, tentou, mas, mesmo assim, algumas casas vão ser removidas. Ou até situações em que muitas vezes, poxa vida, a casa está na beira de um trilho. Um trem que passa, é uma área ruim pra pessoa.
OP – É o caso de Fortaleza.
Rolnik – É. Em algumas situações, a segurança delas exige, para a moradia adequada delas, que elas possam ser deslocadas para outro lugar. Como fazer isso? As alternativas que se apresentam para essas pessoas, na maior parte das vezes, é que ou não apresenta alternativa nenhuma. Vai com ameaça. Ou apresentam propostas de indenização em dinheiro – R$ 5 mil, R$ 10 mil, R$ 15 mil. Absolutamente insuficiente para aquela pessoa poder ter uma moradia adequada. Resultado: vai ocupar outra beira de trilho de trem. Ou beira de rio. Óbvio. Porque não tem outra alternativa. Ou, também, as propostas de reassentamento, que geralmente são super distantes do lugar onde a pessoa mora. Não consideram que a moradia adequada não é só a casa. A moradia adequada, para os direitos humanos, é a porta de entrada para os outros direitos. Direito à educação, direito à saúde, direito ao trabalho, ao acesso aos meios de sobrevivência.
OP – Essa reacomodação, então, deve ser o mais próximo possível do lugar original.
Rolnik – Para que essa rede em que a pessoa está inserida, que é uma rede de oportunidades de trabalho, de sustentação econômica, social e até de parentesco possa, ao máximo, ser mantida. E a pessoa deve sofrer o mínimo de efeitos perversos. Porque o que acontece é que, na hora em que arranca daqui e joga pra lá longe e enfia dentro de uma casa, a pessoa perde o posto de saúde onde fazia o tratamento, já tinha a ficha, conhecia o médico. Perdeu a vaga na escola onde o menino estudava. Perdeu a oportunidade de ir a pé ao local onde ela trabalhava. A uma série de outras violações você vai expondo essa pessoa. Tem de ser o mais próximo e de comum acordo.
OP – A nova casa deve estar pronta?
Rolnik – De preferência. Se a casa não está pronta, ela tem de existir. A pessoa saber que é este meu apartamento, neste lugar, está tudo certo, falta terminar a obra, dois ou três meses. Então, vamos esperar a obra terminar para poder deslocar a pessoa. Ou essas soluções paliativas, que são intermediárias, provisórias, que está se usando muito no Brasil, que é o bolsa-aluguel, estamos vendo o monte de problemas que está dando. Valores baixos, que não permitem que a pessoa alugue no lugar lá onde ela estava morando. Já começa assim, degradando a condição da pessoa. Segundo, já vi situações, não no âmbito da Copa, mas na reconstrução depois da enchente em Niterói, há dois anos: as pessoas começaram a receber a bolsa-aluguel. De repente, parou a bolsa-aluguel. Mas aí a comunidade já está toda desarticulada, dispersa. As pessoas sozinhas. E aí acabou. O direito à moradia delas fica completamente violado.
OP – No caso mais problemático de Fortaleza, ao lado do trilho onde passará o Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), há a questão do risco às famílias, que a senhora mencionou. Além disso, é área da União, que, em tese, não poderia ser ocupada.
Rolnik – Áreas da União podem ser ocupadas. Existe inclusive um instrumento, no Brasil, de reconhecimento a esses direitos de ocupação de áreas da União. Chama-se Concessão Especial de Moradia. Instrumento que existe desde o Estatuto das Cidades, em 2001. É instrumento para regularizar situações de posse em áreas públicas. Inclusive área ambiental. A questão é da segurança. A moradia adequada é aquela que não oferece risco à saúde e à vida. Por exemplo, assentar perto de lugar que era um lixão, como já vi aqui (em Fortaleza), não é adequado. É uma área contaminada. Expõe quem vai morar lá a risco. Viver grudado num trilho onde está passando um trem, você está sujeito a risco. Então, não é adequado. A questão, como lhe disse, não é que não pode remover. De jeito nenhum. Muitas vezes, a gente tem de remover, pela segurança e adequação da própria família. A questão é: como, para onde, através de que processo?
OP – Como a senhora situa Fortaleza em relação ao que viu em outras sedes da Copa?
Rolnik – Tenho expectativa muito grande ainda, em relação ao Brasil, em geral. E a Fortaleza, em particular. Porque o que eu observei em outras situações, como em Porto Alegre (RS) e no Rio de Janeiro, que inicialmente começa até com violência, truculência, completamente ao arrepio de qualquer lei. Mas, à medida que a população toma consciência, se organiza, chama atenção, à medida que esse também é um tema trabalhado pelos meios de comunicação, já houve recuos e mudanças de conduta dos governos. Em Porto Alegre, ia jogar lá pra longe. Mas, não, voltou atrás. Vai reassentar ali mesmo, no bairro. Ia transferir, dar bolsa-aluguel e só depois construir a casa. Não, é chave contra chave. Mudanças no sentido de incorporar essas reivindicações. No Rio de Janeiro, as indenizações, que no começo tinha uma portaria que só poderiam ir até R$ 40 mil, hoje isso foi dobrado. Podem ir a R$ 80 mil. Fruto da denúncia, da organização, da mobilização e da resistência a essas violações. Acredito que estamos num momento importante em Fortaleza, onde se anuncia alguma possibilidade de mudança de conduta. No caso, por exemplo, da comunidade Aldaci Barbosa, a partir da organização, da mobilização, houve pelo menos sinalização de mudança no projeto. Diminuindo radicalmente o número de removidos. Isso é muito positivo. Às vezes, governadores e prefeitos tentam minimizar (os protestos). “Isso é gente de oposição, gente que está querendo se aproveitar e fazer oposição política”. Evidentemente que tem componente político em todo lugar. Mas eu posso testemunhar que tenho ido e, aqui em Fortaleza, fui conversar com os moradores. Com as pessoas. Com as velhas, com os novos. Não com as referências. Com as pessoas que moram lá. E mais de uma vez teve gente que foi falar comigo e não conseguiu falar porque chorava. Não conseguia parar de chorar. E contou, e não só contou, como mostrou coisas pra mim, que são absolutamente inaceitáveis. As autoridades têm de se abrir para entender que começaram com conduta que não é correta. Entender, reconhecer e mudar isso. Porque ainda é tempo. A gente não pode ter um legado da Copa do Mundo com violações dos direitos humanos para fazer isso. Não se faz legado violando direitos humanos.
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http://www.opovo.com.br/app/opovo/paginasazuis/2012/07/02/noticiasjornalpaginasazuis,2870214/moradia-acima-do-espetaculo.shtml
Enviada por Valéria Pinheiro.