Cândido Grzybowski – Sociólogo, diretor do Ibase
Está em curso um novo renascer na Itália. No espaço de menos de um ano, o clima político italiano é outro. A gente sente no ar que algo de muito renovador está ocorrendo. A era truculenta, populista e fascista de Berlusconi, de desconstrução da democracia, dá lugar a uma nova. Isto quando a Itália está para completar os 150 anos do Risorgimento, a unificação do século XIX. É como se um novo ressurgimento, o da possibilidade de uma reconstrução democrática, começasse a se delinear pelo despertar da cidadania. Serão ecos do que se passa no mundo árabe, do outro lado do Mediterrâneo?
Neste mês de maio, nas eleições locais do primeiro turno, as forças de direita comandadas por Berlusconi sofreram uma monumental derrota. Não foram eleições em todas as localidades, mas o que aconteceu já é muito significativo para a correlação de forças políticas. Neste domingo, em segundo turno, se decide a eleição mais importante, a de Milão, o berço de Berlusconi. O advogado Giuliano Pisapia, da oposição, tem grandes chances de vitória contra a atual prefeita, Letizia Moratti, candidata à reeleição, da base de Berlusconi. Uma vitória também em Milão, devido ao impacto que isso teria no regime parlamentarista italiano, consolida uma tendência que pode acelerar as mudanças. Falta a oposição, particularmente a esquerda no Partido Democrático (com origem no antigo PC italiano), entender os sinais da cidadania nas urnas e transformar isso em propostas políticas de futuro para a Itália.
Mas os sinais da mudança aparecem em outros grandes movimentos. Em 12 de junho, a cidadania deve voltar às urnas para um
duplo referendo: sobre a água como bem comum e sobre o não à energia nuclear. No referendo, a cidadania ratifica ou não decisões do Parlamento. A campanha na sociedade civil é pelo sim à agua e pelo não à energia nuclear, em clara oposição às propostas de Berlusconi e sua já precária maioria no Parlamento. O desafio para a cidadania ativa é motivar eleitores a comparecer às urnas logo após este período eleitoral de maio. É necessário o comparecimento da maioria do eleitorado para dar validade ao referendo. Como observador externo, sentindo o ar da mudança no ar, minha aposta é que a cidadania ativa italiana vai completar bem a sua tarefa neste momento de ressurgimento.
Não é difícil entender essa capacidade da cidadania italiana surpreender quando menos se espera. A força da democracia na Itália reside no local. Trata-se de um país com um poder e uma economia com sólidas raízes locais. Claro que existe um poder central, hoje dominado por Berlusconi e seu bando de direita de perfil fascista, – um grupo que assaltou o Estado e dilapidou os valores democráticos e os bens comuns italianos. O segredo da trajetória de Berlusconi foi ter conseguido estabelecer raízes locais, num contexto de perda de rumo das maiores tradições democráticas, de centro e esquerda, cuja força sempre foi fundamental ao nível local. É o local que mais uma vez faz a diferença nesta sempre viva Itália.
Comprovei isso participando, pela terceira vez, da “Terra futura”, uma grande exposição-conferência internacional sobre as boas práticas de vida, de governo e de empresa para um futuro de equidade e sustentabilidade. “Terra futura” busca sensibilizar a cidadania para novos estilos de vida, educar e formar agentes sempre mais ativos e responsáveis, através de conhecimento e difusão das boas práticas. É uma encruzilhada da cidadania para, através da demonstração, do diálogo, da troca e do debate, criar novas articulações, alianças e redes, bem como fortalecer as existentes, e com isso promover a democracia de baixo para cima, com impacto em políticas públicas, nos projetos e no próprio imaginário da sociedade.
De 20 a 23 de maio deste ano se realizou a oitava edição, em Florença, no mesmo local em que se realizou, em 2002, a primeira edição do Fórum Social Europeu. Esperavam-se em torno de cem mil visitantes ao longo dos 3 dias. A alegria e a vibração das pessoas impregnava a todos. Participei como convidado, junto com o bispo italiano Luis Infanti De la Mora, há 28 anos na Patagônia chilena, de um diálogo sobre biocivilização para a sustentabilidade da vida e do planeta. Como ouvinte curioso, estive em outros diálogos, bens comuns, energia solar, mídia e espaço público, Europa e cidadania, mas me dei tempo para percorrer com calma a diversificada exposição em meio a jovens e crianças, pessoas de todas as idades, todas curiosas, vendo, ouvindo, participando de debates, beliscando aquelas maravilhas da produção local, comprando, felizes. Parecia a Itália orgulhosa de si mesma, de sua capacidade de mostrar tanta força e criatividade.
Voltei da Itália convencido que o local – onde viver é tanto produzir como habitar e criar tecido associativo, é compartir bens comuns e participar da construção coletiva, é inventar soluções à escala das pessoas, das famílias, é priorizar o bem viver e ser feliz – é o grande laboratório humano em que o reequilíbrio entre sociedade e natureza pode ser restabelecido numa perspectiva de direitos e responsabilidades compartidas, de participação e solidariedade, que produz igualdade respeitando identidades diversas, com impacto que chega a escalas maiores, o nacional, o regional e o mundial.