Um barco à deriva

Hoje no Mulheres pelo Mundo, Gisela Anauate fala da agonia de um grupo de imigrantes africanos. Jornalista, ela tem 26 anos e faz mestrado em Culturas Literárias Europeias. Morou um ano na França e agora vive na Itália.

O tom deste post será um pouco mais pesado que o habitual. É que esta semana li uma notícia no jornal britânico The Guardian que, mais do que me deixar arrepiada, tem me atormentado. Não consigo pensar em outra coisa. Segundo o jornal, 61 pessoas morreram de fome e sede num barco em pleno Mediterrâneo. Eram africanos que embarcaram em Tripoli, na Líbia, para tentar chegar à ilha de Lampedusa, no sul da Itália. Eram pessoas que tentavam escapar de perseguições, bombas e tiros e acabaram encontrando a morte de uma forma talvez ainda mais desesperadora e cruel: abandonadas à própria sorte em alto-mar, sem comida nem água. Como se estivessem num navio negreiro no século XVI. Mas estamos em 2011, e a faixa do oceano onde o barco ficou à deriva, sem combustível, é extremamente vigiada. Como é que esse barco passou despercebido pelos radares e rádios de centenas de embarcações que estavam na região? Aí é que está o mais grave: ele não passou despercebido. As nove pessoas que sobreviveram à tragédia contam que o barco fez contato com várias embarcações militares (uma delas seria da própria ONU), lançou um alarme à guarda costeira italiana e ainda foi sobrevoado por um helicóptero. E o resgate? Chegaria em breve, diziam os ocupantes do helicóptero, enquanto jogavam garrafinhas d’água e biscoitos.

O resgate não veio. Foram 16 dias de morte lenta para os ocupantes do barco. Um dos sobreviventes contou ao Guardian que viveu porque bebeu a própria urina e comeu dois tubos de pasta de dente. Após os 16 dias, com a maioria de seus ocupantes já morta, o barco foi trazido pela maré de volta ao litoral líbio. Os 10 sobreviventes (um morreu literalmente na praia) ainda ficaram presos por quatro dias pelas forças do ditador Khadafi. Outro sobrevivente morreu na prisão.

Não consigo nem imaginar tamanho cenário de horror. Só consigo sentir uma imensa revolta. Os países europeus estão jogando a culpa um no outro e a ONU nega ter recebido qualquer sinalização. É mais triste ainda pensar que muitos outros barcos sofreram destinos parecidos: estima-se que mais de 800 pessoas tenham morrido na travessia entre a Tripoli e Lampedusa.

Há algumas semanas, vi um debate na Universidade de Bolonha entre professores especialistas em imigração. Todos eles concordaram em uma questão: alguns países europeus apoiaram ditaduras sangrentas no norte da África e no Oriente Médio num passado bem recente. Isso por interesses próprios. Um deles é o fato de que regimes fechados não permitem que seus cidadãos imigrem. No momento em que essas ditaduras não funcionam mais, e que a população se revolta, a Europa celebra a democracia e tenta ajudar na transição. Mas também existem interesses nessa transição. Espera-se que os novos governos garantam – de outras formas, claro – o que as ditaduras garantiam antes: que seus cidadãos não venham (não queiram vir, nesse caso) morar na Europa. O medo da imigração, porém, começou antes mesmo de esses novos governos serem instaurados. A Europa não quer nem acolher refugiados. O barco abandonado no Mediterrâneo é a face mais aberrante desse medo.

Recentemente, o premier Berlusconi apareceu todo bonzinho distribuindo permesso di soggiorno para os refugiados que chegaram a terras italianas. Boa parte dos imigrantes nem quis ficar por aqui e embarcou correndo em trens para outros países. O presidente francês Sarkozy, por sua vez, mandou interromper o tráfego de trens vindos da Itália para que um grupo de tunisianos não desembarcasse com seus farrapos na bela Paris. Criou-se um mal-estar e os dois dirigentes se reuniram para discutir a validade do acordo Schengen, que permite a livre circulação de pessoas entre a maior parte dos países da Comunidade Europeia sem controle de fronteiras. Eu escrevi livre circulação de pessoas? Se o acordo sobre o espaço Schengen for de fato revisto, só se essas pessoas forem europeias…

O que é ser europeu hoje? Difícil dizer. A Europa multicultural, povoada com os filhos de suas ex-colônias, não sabe como lidar com a imigração. Na Itália, onde vivo, dois discursos contraditórios vêm da exata mesma fonte, o governo nacional. Ambos são baseados em questões econômicas. Um deles diz que a Itália é pequena para dar emprego a tantos imigrantes. O outro diz que falta mão-de-obra. Um estudo divulgado pelo próprio Ministério do Trabalho mostrou que a Itália precisaria de 1 milhão e 800 mil imigrantes até 2020. Essa é a mão-de-obra imigrante necessária à indústria e ao campo para que o país saia da crise econômica mundial. Qual é a verdade, então? Segundo um cientista social que falou no debate, a verdade é que as empresas sonham com “imigrantes de tempo determinado”. Que imigrem legalmente para a Europa para preencher vagas temporárias e voltem para seus países logo que a empreitada terminar. Seja na construção civil, nas plantações, na pecuária…

Como é a vida de um imigrante na Europa? Posso dizer que na Itália o preconceito é latente. Não contra mim, que sou branca, tenho cidadania italiana e bolsa de estudos. Acham meu sotaque bonitinho. Já os africanos, paquistaneses, filipinos, romenos e muitos outros povos que tentam ganhar a vida por aqui não parecem bem-vindos. Obviamente, não se pode generalizar. Muitos italianos não só não são preconceituosos como se interessam pela vida dos imigrantes e pela sua integração à sociedade. Mas devo dizer que, no ônibus ou na rua, sempre ouço comentários sobre “como a Itália já não é mais a mesma”, como “essa gente atrapalha tudo”, como “ninguém se sente mais seguro nas praças públicas”. Um dia, ouvi um pacato senhor bolonhês dizer a seguinte frase: “Antes a gente reclamava dos sicilianos que vinham para o norte. Não sabíamos o que seria ‘isso’ perto dos sicilianos…”. “Isso” são os sicilianos da Itália de hoje, os “extra-comunitários”, como muitos preferem chamar os imigrantes que não pertencem à União Europeia.

Não vou dar uma de ingênua e dizer que a Europa deveria derrubar as fronteiras e abrir as portas para a imigração. Mas é absolutamente necessário que as autoridades europeias parem de empurrar a questão para debaixo do tapete (ou debaixo das águas do Mediterrâneo) e encarem a imigração de forma humana. Que vejam os imigrantes como gente, e não como entulho indesejado. Que ao menos não deixem 61 pessoas morrerem de fome e sede a alguns quilômetros das suas cobiçadas fronteiras.

http://colunas.epoca.globo.com/mulher7por7/2011/05/14/um-barco-a-deriva. Enviada por José Carlos.

Comments (1)

  1. E”os barcos à deriva” no Brasil? Este país que dizem existir uma convivência plurirracial? Todos os estudos mostram como o Negro carioca e brasileiro sofre ,é perseguido e morto pelas camadas dominadoras,difícil conseguir ascensão social e mais difícil ainda se inserir no mundo jurídico.econônico e de trabalho.

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