40 anos do movimento indígena em Roraima: o desafio da renovação das lutas

Quase mil pessoas compareceram à assembléia que comemorou os 40 anos do movimento indígena de Roraima.

Foram eleitos os novos coordenadores do CIR. Assembléia faz avaliação de gestão anterior e discute temas estratégicos para povos indígenas de Roraima

O Conselho Indígena de Roraima (CIR) divulgou hoje a carta oficial da 40ª Assembléia Geral dos Povos indígenas de Roraima, encerrada no dia 16 de março (veja a íntegra do documento). O lugar escolhido para a assembléia não poderia ser mais propício: a comunidade do Barro, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TIRSS), às margens do rio Surumu. Passagem obrigatória dos arrozeiros para as suas fazendas, a região foi palco de alguns dos enfrentamentos mais violentos durante a luta pela homologação da TIRSS. Lá ocorreram o incêndio e a destruição de várias dependências da missão Surumu por um grupo de homens armados, em setembro de 2005, e o atentado contra dez indígenas, em maio de 2008. Foi no prédio da missão religiosa, agora transformada no Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol, que em 1971 ocorreu a primeira assembléia dos tuxauas da região, com apoio da Diocese de Roraima. Desde então, todos os anos, os indígenas de Roraima vêm promovendo suas assembléias. O fato da organização indígena ter nascido no auge da ditadura militar foi lembrado ao longo do encontro e agradecimentos foram feitos aos movimentos sociais e missionários da Diocese que iniciaram, junto com os tuxauas, a luta para a criação do CIR.

Foi assim que na quadra poliesportiva do Barro, entre os dias 11 e 16 de março, realizou-se a assembléia, em tom comemorativo, convocada com o mote “40 anos de Luta e Organização Indígena em Roraima”. Foi a segunda assembléia geral realizada após a decisão conclusiva do Supremo Tribunal Federal sobre a homologação da TIRSS em área contínua.

Para celebrar os 40 anos de lutas e conquistas históricas e para planejar o futuro dos povos indígenas de Roraima, compareceram mais de 950 participantes (segundo dados oficiais), entre lideranças de base e convidados parceiros do CIR, para uma extensa programação – desde o anúncio do resultado da eleição para os novos coordenadores do CIR, no primeiro dia, até a cerimônia de posse, no último, passando pela avaliação do mandato da coordenação que terminava e pela discussão dos temas de interesse dos povos indígenas, entre outras atividades (veja a programação).

A assembléia

As fortes chuvas que caíram entre os dias 10 e 13 de março e as dificuldades rotineiras de liberação dos recursos obtidos para a realização da assembléia atrasaram em uma manhã seu início. Assim, o evento só começou na tarde da sexta-feira, dia 11 de março, com apresentações culturais de grupos de jovens das escolas da região do Surumu.

A proclamação do resultado da eleição para a coordenação do CIR veio em seguida, trazendo uma novidade para o movimento indígena na região: a eleição para coordenador geral do CIR do jovem wapichana Mário Nicácio, de 28 anos, da Terra Indígena Manoá-Pium, aldeia Pium, região da Serra da Lua. Eleito com 3.093 votos (54% dos votos válidos), Nicácio ganhou em sete das dez regiões do CIR, perdendo na região das Serras e do Amajari, e na sede do CIR, em Boa Vista. Em segundo lugar ficou o macuxi Ivaldo André, da aldeia Maturuca, da região das Serras, com 1.232 votos, ficando assim como vice-coordenador. Já a taurepang Thelma Marques da Silva, da região do Amajari, foi eleita secretária do Movimento de Mulheres com 3.059 votos. Os três foram eleitos para um mandato de dois anos e sucederão, respectivamente, Dionito José de Souza, Terêncio Manduca e Marizete de Souza. Marizete também concorréu à coordenação, ficando em terceiro lugar com 1.019 votos. Participam do processo eleitoral do CIR as pessoas maiores de 14 anos, sendo a eleição realizada de forma direta nas comunidades. Após o anúncio do resultado, Nicácio, Ivaldo e Telma fizeram breves pronunciamentos, já que a cerimônia de posse estava marcada para terça-feira. Nicácio fez questão de destacar a sua experiência em gestão administrativa, financeira e de projetos.

O que era para ter sido uma surpresa – o anúncio do resultado da eleição por ocasião da assembléia – foi prejudicado pelo vazamento do resultado da eleição na semana anterior. Discursos de lideranças experientes como Jacir José de Souza Macuxi e o coordenador Dionito fizeram menção ao ocorrido, reprovando o vazamento e repreendendo a comissão eleitoral pelo ocorrido. Ganhador do Prêmio Chico Mendes de 2009, Jacir observou que a eleição para a coordenação do CIR não é igual campanha política de branco, onde é preciso ganhar ou ter mais votos, razão pela qual não se justificaria fazer campanha. Para ele, o resultado deve ser expressão da consciência das comunidades. Performático, seu Jacir enfatizou a importância da união dos indígenas: ao chamar um grupo do Maturuca para cantar e dançar. Atrás desse grupo, ele quebrou uma vara e, em seguida, mostrou como era difícil quebrar um feixe de varas. Enfim, o espírito foi o de enfatizar a importância de se cultivar união do movimento indígena e preservar o CIR. Um feixe da varas permaneceu sobre a mesa durante toda a assembléia, como a sinalizar isso permanentemente.

O segundo dia foi dedicado a celebrar os quarenta anos de história e a apresentar e avaliar os dois anos de trabalho da Coordenação Geral que encerrava seu mandato. Os informes da coordenação do CIR e dos coordenadores regionais e parceiros presentes foram feitos quase que integralmente sem o suporte da aparelhagem de som, pois a Companhia Energética de Roraima não disponibilizou a energia antes das 10 horas da manhã, conforme solicitado.

Ainda pela manhã e início da tarde, uma mesa coordenada por Ivaldo André, vice-coordenador eleito, reuniu tuxauas experientes, como Jacir José de Souza Macuxi e Clóvis Ambrósio Wapichana, que relataram a caminhada da organização, marcada por lutas, resistência, sofrimento e conquistas. Carlo Zaquini representou os missionários e religiosos que apoiaram os indígenas em Roraima ao longo de quatro décadas. Sintomático dos dilemas relativos à construção do sentido dessa história de lutas e conquistas é o emprego ainda corrente do termo “distrito” para se referir ao assentamento próximo à missão do Surumu – posto que, administrativamente, ali seria a sede do distrito homônimo do município de Pacaraima. Vários se manifestaram fortemente no sentido de marcar que aquela era a comunidade indígena do Barro, que era esta quem estava acolhendo a assembléia e que não era mais para ninguém se referir ao local como “distrito”.

À tarde, o coordenador Dionito Macuxi e a secretária Marizete Souza, que deixam os cargos, expuseram os trabalhos desenvolvidos durante os últimos quatro anos à frente do Conselho. Dionito fez uma leitura resumida do relatório de atividades da sua gestão e Marizete destacou a importância da participação das mulheres em todo o processo construído nas últimas quatro décadas, sugerindo que a sua candidatura é uma indicação de que haverá um dia em que as mulheres assumirão a coordenação do CIR, tal como uma mulher chegou à Presidência da República.

O final do segundo dia foi marcado pela cerimônia de certificação dos indígenas que participaram do treinamento da brigada comunitária da Região das Serras (Brigada Turuka) pelo Programa PrevFogo do IBAMA, no âmbito do Programa Agentes Ambientais Voluntários Indígenas, apoiado pela TNC. Na ocasião, foram entregues os equipamentos de proteção individual (EPIs) aos brigadistas formados. Participaram do ato representantes do IBAMA de Brasília e Roraima e o coordenador estadual do programa PREVFOGO.

O domingo foi dedicado a realizar uma avaliação do CIR e de suas coordenações regionais, projetos de saúde, educação e etnodesenvolvimento e da atuação dos órgãos de defesa dos direitos indígenas nas regiões, além de esboçar linhas de planejamento a partir de diagnósticos dos problemas de cada região. Isso foi feito por meio de trabalhos em grupos por região, com a apresentação dos resultados na parte da tarde. Antes da apresentação dos resultados dos trabalhos em grupo, o Conselho Fiscal fez a leitura do seu circunstanciado relatório. Foi um dos pontos altos, pois o Conselho revelou ter feito um bom trabalho de revisão da documentação administrativa e financeira do CIR. Se, por um lado, ficaram evidentes algumas dificuldades de gestão administrativa e financeira de projetos que o CIR ainda enfrenta, por outro, as recomendações do Conselho foram construtivas, constituindo quase que uma plataforma para um manual de procedimentos.

Na segunda-feira, quarto dia de assembléia, foi discutido o processo de reestruturação da Funai, a parceria entre CIR, Ibama e Funai para a formação de brigadas de combate a incêndios, além dos projetos de etnodesenvolvimento nas comunidades indígenas e da formação de estudantes indígenas para o fortalecimento de atividades voltadas ao desenvolvimento sustentável. A discussão contou com a participação de representantes do Ministério Público Federal, Ibama, Funai e do Instituto Insikiran, vinculado à Universidade Federal de Roraima (UFRR), além das lideranças e coordenadores dos CIR.

Hidreletricas e mineração

A questão ambiental teve grande destaque ao longo da assembléia. O Coordenador Geral da COIAB (Coordenação das Organizações Indígena da Amazônia Brasileira), Marcos Apurinã, manifestou-se sobre a necessidade de articulação nacional e internacional contra as grandes ameaças aos territórios indígenas, citando como exemplo a hidrelétrica de Belo Monte no rio Xingu. Essa preocupação prosseguiu no quinto dia da assembleia. Na mesa que enfocou o tema energia (a Hidrelétrica do Rio Cotingo e a Micro Hidrelétrica da Cachoeira da Andorinha) e mineração, com poucas exceções, as falas foram duras, criticando o governo do estado e questionando a afirmação de que não haverá impacto nenhum para os povos indígenas pela implatação de hidrelétricas, conforme afirma o governo. O representante do MPF lembrou que os trâmites legais não foram seguidos e a FUNAI declarou não ter autorizado nada. As organizações parceiras presentes, entre as quais o ISA, lembraram a necessidade de se respeitar a lei e garantir aos indígenas as informações necessárias para um posicionamento esclarecido sobre a construção das micro-UHEs. Na ausência do governo, que não mandou representantes, não houve muita discussão, salvo por alguns tuxauas que defenderam as micro-UHEs, sem, contudo, lograr apoio da assembleia. No documento oficial da assembléia, enviado à presidente Dilma, ministros de estado e diversas autoridades, consta o repúdio da organização à violação dos direitos dos povos indígenas pelo governo do estado, que realiza pesquisas e tenta implantar as micro-UHEs “sem consulta prévia aos povos que lá habitam, conforme lhes garante a Constituição Federal e a convenção 169 da OIT”.

Sobre a mineração, o MPF explicou porque recomendou ao Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) que declarasse nulos todos os títulos minerários concedidos em TIs no território nacional e indeferisse todos os pedidos de pesquisa mineral ou requerimento de lavra em TIs ainda em trâmite na autarquia (saiba mais). Algumas lideranças indígenas e organizações parceiras lembraram que é preciso primeiro aprovar o Estatuto dos Povos Indígenas antes do Congresso Nacional avançar na discussão do projeto de lei que regulamenta a mineração em Terras Indígenas.

A passagem do cocar

A noite se encerrou com a posse do novo coordenador, com pompa e circunstância, como manda a tradição. Em meio a discursos enfatizando a manutenção da força e da unidade do movimento indígena, Nicácio, Ivaldo e Telma tomaram posse, passando pelo ritual da pintura corporal realizado com a pajé Mariana. Em seguida representantes de todas as etnias presentes (Wapichana, Macuxi, Taurepang, Sapará, Ingarikó, Yanomami, Yekuana, Xiriana e Patamona) prosseguiram com o ritual da pintura no corpo dos eleitos e fizeram saudações na língua materna de seus povos. Foi um momento de afirmação e deferência, que teve seu ápice quando o coordenador que deixava o cargo, Dionito, realizou a passagem do cocar para o seu sucessor, o novo coordenador Mário Nicácio, que então fez seu discurso de posse.

Encerramento

O último dia foi destinado à eleição dos membros do Conselho Fiscal, à aprovação das deliberações pela plenária e à votação que definiu o local que irá sediar a próxima assembléia. O local escolhido para a realização da próxima assembléia, em 2012, foi o Centro Regional do Lago do Caracaranã, também na TIRSS, outro lugar simbólico para o movimento indígena. É um local de grande beleza, com águas claras e muito peixe, rodeado de área branca à sombra de cajueiros, que durante décadas foi o principal atrativo turístico de Roraima. O lago reunia milhares de pessoas em festivais realizados nos meses de verão, mas sem a estrutura adequada para receber eventos de grande porte o local sofria com o acúmulo de lixo e a contaminação da água. Durante a luta pelo reconhecimento da TIRSS, diversas propostas surgiram para que a homologação fosse feita na forma de “ilhas”, deixando o lago do lado de fora da terra indígena. Entretanto, com a confirmação da homologação em área contínua, o Lago do Caracaranã voltou a ser de usufruto exclusivo dos índios. O aproveitamento do potencial turístico do lago em benefício das comunidades indígenas, embora não esteja descartado, é um tema que apenas começa a ser discutido, sempre com muitas ressalvas devido ao histórico de uso predatório que sempre acompanhou a exploração turística no local.

O produto final da assembléia foi uma carta de reivindicações dirigida às principais autoridades do país, dividida em 18 itens que abordam temas relacionados ao meio ambiente, saúde, educação, etnodesenvolvimento e direitos dos povos indígenas. Entre as reivindicações estão a efetiva retirada de invasores, combate aos crimes ambientais, pedidos de ampliação, indenização às vítimas de violência e às famílias das 21 lideranças indígenas assassinadas durante a luta pela terra, seguida da respectiva punição dos culpados, apoio ao Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol, fortalecimento das ações de saúde e educação, criação da Terra Indígena Arapuá, retirada dos garimpeiros da terra Yanomami e o reconhecimento de seu modelo de educação diferenciado (magistério Yarapiari), além da garantia dos direitos dos povos indígenas na tramitação do projeto de lei que regulamenta a mineração em terras indígenas, entre outras. O documento traz críticas às condicionantes do STF que facilitam o acesso de fazendeiros e comerciantes não índios contribuindo para a disseminação do alcoolismo, às políticas assistencialistas do governo federal, à burocracia para acessar recursos destinados aos povos indígenas, e à forma como o Instituto Chico Mendes (ICMBio) vem tratando a questão da sobreposição do Parque Nacional do Monte Roraima com a TIRSS. Foi aprovada uma deliberação especial onde o CIR manifesta apoio à luta dos povos indígenas do rio Xingu e subscreve as resoluções destes povos contra a construção da Hidrelétrica de Belo Monte. Também foi exigida a e a substituição da coordenação técnica do Distrito Sanitário Indígena do Leste de Roraima e a nomeação de um novo coordenador regional para FUNAI.

Sob nova coordenação

O perfil do novo coordenador do CIR aponta para o que pode ser um novo momento para o movimento indígena de Roraima e para o CIR. Se a eleição de Euclides Macuxi à Coordenação do CIR representou a chegada dos professores indígenas a essa posição e a de Dionito a dos agentes indígenas de saúde, a eleição de Nicácio pode significar a chegada dos “estudantes” e “gestores” a posições de liderança formal. Ele é da primeira turma de Gestão Ambiental do Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol (CIFCRSS), antiga Escola do Surumu, tendo graduação em administração, com habilitação em sistemas pela Faculdade Cathedral. Embora nunca tenha exercido a função de tuxaua, Nicácio já foi gestor do CIFCRSS, assessor em Brasília do Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas do Brasil (PDPI) e do Centro Indígena de Estudos e Pesquisas (CINEP), e, em Boa Vista, do Programa de Proteção das Terras da Amazônia Legal (PPTAL).

Primeiro coordenador vindo da região da Serra da Lua, ele representa, assim, uma nova geração de líderes indígenas, e ascende à posição de Coordenador do CIR em substituição às lideranças tradicionalmente providas pela aldeia de Maturuca, coração da luta pela TIRRS. Interrompendo esse ciclo, o novo coordenador pretende levantar quatro bandeiras no seu mandato: gestão participativa; garantia da terra; manejo e sustentabilidade; fortalecimento da cultura e identidade indígenas. Durante a assembléia, Nicácio teve a oportunidade de ouvir vários recados, sugestões e orientações que lhe foram endereçados, ainda que não nominalmente. Cabe a ele saber se apropriar desse aprendizado, administrando as tensões entre tradição e mudança, continuidade e renovação. Um jovem que nasceu em meio à luta tem agora o desafio de levá-la adiante e consolidar as conquistas de uma das maiores organizações indígenas do país.

http://www.socioambiental.org/nsa/detalhe?id=3283

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.