“O que está se assistindo, neste momento, é uma mudança na administração do poder global dos EUA. Esse processo está em pleno curso, mas será longo e complicado, envolvendo divisões e lutas dentro e fora da sociedade e do establishment americano”, avalia José Luís Fiori, professor titular e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da UFRJ, em artigo publicado no jornal Valor,23-03-2011.
Segundo ele, “o poder imperial americano deverá enfrentar uma perda de legitimidade crônica dentro dos EUA, porque a diversidade e a complexidade nacional, étnica e civilizatória, do seu império são absolutamente incompatíveis com a defesa e a preservação de qualquer tipo ou sistema de valores universais, ao contrário do que sonha uma boa parte da sociedade americana”.
“O passeio da família Obama aos trópicos – escreve Fiori -, e a retórica simpática e amena do presidente americano serviram para demonstrar como funciona na prática, o “tratamento entre iguais”, quando um deles é um Império”. Eis o artigo.
O passeio de fim de semana da família Obama ao Brasil passaria à história como um acontecimento turístico carioca e uma gentileza internacional, se não tivesse coincidido com o desastre nuclear do Japão, e com o início do bombardeio aéreo da Líbia. Em particular, porque a decisão dos EUA de atacarem o país norte-africano, foi tomada no território brasileiro, um pouco antes do jantar festivo que o Itamaraty ofereceu à delegação americana.
Essa decisão, sobretudo, serviu para relembrar aos mais apressados que os EUA seguem sendo a única potência mundial com “direito” de decidir – onde e quando quiser – e com a capacidade de fazer intervenções militares imediatas, em qualquer conflito ao redor do mundo. Uma lembrança oportuna, porque se tornou lugar comum, na imprensa e na academia – à direita e à esquerda – falar do declínio do poder americano, enquanto se acumulam as evidências no sentido contrário.
Depois de 1991, e em particular depois do fim da URSS, a Europa deixou de ser o centro de gravidade do sistema internacional, que passou para o outro lado do Atlântico. E ao mesmo tempo, os EUA se transformaram na “cabeça” de um novo tipo de “poder global”. Um império que não é colonial, não tem estrutura formal e que possui fronteiras flexíveis, que são definidas em cada caso, em última instância, pelo poder naval e financeiro dos EUA. E desde o início do século XXI, os EUA estão enfrentando as contradições, os problemas, e as trepidações produzidas por essa transição e essa mudança de status: da condição de uma “potência hegemônica”, restrita ao mundo capitalista, até a década de 1980, para a condição de “potência imperial global”. Hoje, é impossível prever como será administrado esse novo tipo de império, no futuro. Porque ele segue sendo nacional e terá que conviver, ao mesmo tempo, com cerca de outros duzentos estados que são ou se consideram soberanos. E além disso, porque dentro desse sistema, a expansão do poder americano é a principal responsável pela multiplicação dos seus concorrentes na luta pelas hegemonias regionais, dentro do sistema mundial.
O que está se assistindo, neste momento, é uma mudança na administração do poder global dos EUA. Esse processo está em pleno curso, mas será longo e complicado, envolvendo divisões e lutas dentro e fora da sociedade e do establishment americano. Mesmo assim, o mais provável é que ao final desse processo, os EUA adotem uma posição cada vez mais distante e “arbitral” com relação aos seus antigos sócios, e em todas as regiões geopolíticas do mundo. Estimulando as divisões internas e os “equilíbrios regionais” de poder, jogando os seus próprios aliados uns contra os outros, e só intervindo diretamente em última instância, segundo o modelo clássico do Império Britânico.
Esse novo tipo de poder imperial dos EUA não exclui a possibilidade de guerras, ou de fracassos militares localizados, como no Iraque ou Afeganistão, nem a possibilidade de crises financeiras, como a de 2008. Essas crises financeiras não deverão alterar a hierarquia econômica internacional enquanto o governo e os capitais americanos puderem repassar os seus custos, para as demais potências econômicas do sistema. E as guerras ou fracassos militares localizados seguirão sem importância enquanto não ameaçarem a supremacia naval dos EUA em todos os oceanos e mares do mundo, e enquanto não escalarem na direção de uma “guerra hegemônica” capaz de atingir a supremacia militar americana.
De qualquer forma, é óbvio que esse novo poder imperial não é absoluto nem será eterno. Como já foi dito, sua expansão contínua cria e fortalece poderes concorrentes, e desestabiliza e destrói os “equilíbrios” e as instituições, criadas pelos próprios EUA, estimulando a formação de “coalizões de poder” regionais que acabarão desmembrando aos poucos o seu poder imperial, como aconteceu com o Império Romano. Por outro lado, a nova engenharia econômica mundial deslocou o centro da acumulação capitalista e transformou a China numa economia com poder de gravitação quase equivalente ao dos Estados Unidos. Essa nova geo-economia internacional, intensifica a competição capitalista, e já deu início à uma “corrida imperialista”, cada vez mais intensa na África e na América do Sul, aumentando a possibilidade e o número dos conflitos localizados entre as Grandes Potências. Além disso, o poder imperial americano deverá enfrentar uma perda de legitimidade crônica dentro dos EUA, porque a diversidade e a complexidade nacional, étnica e civilizatória, do seu império são absolutamente incompatíveis com a defesa e a preservação de qualquer tipo ou sistema de valores universais, ao contrário do que sonha uma boa parte da sociedade americana.
De qualquer maneira, o passeio da família Obama aos trópicos, e a retórica simpática e amena do presidente americano serviram para demonstrar como funciona na prática, o “tratamento entre iguais”, quando um deles é um Império.
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