O dever do medo

“Eventos semelhantes ao ocorrido no Japão não são o fim do mundo, mesmo talvez fazendo alusão a isso. São, ao contrário, o fim de um mundo: de certezas, de axiomas obstinadamente cultivados.” A opinião é da jornalista e filósofa italiana Barbara Spinelli, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 16-03-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto e revisado pela IHU On-Line. Eis o texto:

Há momentos assim na história dos homens: em que se reage mais com a emoção do que com a racionalidade, porque a emoção desperta, incita a estar alerta. Ainda em Ésquilo, a paixão e o sofrer são fontes de aprendizado. É o caso do Japão, desde que, na sexta-feira, o tsunami se acrescentou ao terremoto e não só varreu casas, vidas, vilarejos, mas também causou a explosão de quatro reatores nucleares em Fukushima.

Ao horror que despontou do subsolo e do mar, acrescenta-se agora uma chuva radioativa que leva quem habita perto das centrais a fugir ou a entrincheirar-se em casa. Há momentos em que se abre uma fissura no mundo, e não só no físico, mas também no mental, e por isso é preciso recorrer aos mais diversos expedientes: à inteligência racional, à discussão pública, mas também ao medo, essa paixão julgada muito triste para servir de remédio.

Não por acaso, quando solicita a responsabilidade para o futuro da terra, o filósofo Hans Jonas fala de medo heurístico: não o medo que paralisa a ação ou é usada pelos ditadores, mas aquele que busca entender, descobrir (é isso que heurística significa). Que é gerador de curiosidade, que prevê o mal com apreensão, que faz perguntas, que estimula a retificar o que pensou e fez até então. evoca até o dever do medo: “Torna-se necessário o ‘faro’ de uma heurística do medo, que não se limite a descobrir e a representar o novo objeto, mas que torne conhecido o particular interesse ético que dele resulta” (O Princípio Responsabilidade, Ed. Contraponto, 2006).

À luz do princípio responsabilidade, os governos – como o italiano, o francês – parecem ser completamente vãos, ao desacreditarem esse medo e, desse modo, negam a gravidade do momento e a urgência de corrigir os planos nucleares.

ObamaAngela Merkel dizem exatamente o contrário: “Não se pode fazer como se não houvesse nada”. Mas não é assim com o ministro francês de Energia, Eric Besson, ou o ministro de Desenvolvimento Econômico [italiano] Paolo Romani. Para Besson, nada muda, nem as centrais envelhecidas como as japonesas: na coletiva de imprensa de sábado, ele evitou o termo “catástrofe”, preferindo o menos alarmante “incidente grave”. A mesma atitude teve Romani, que convidou, na segunda-feira, a “não se deixar levar pelo medo”, sem saber do que falava. Não são os únicos: os governantes japoneses também minimizaram durante muito tempo, assumindo como boas as garantias dos gestores das centrais (TepcoTokyo Electric Power Corporation). A própria Tepcoque, mais de uma vez, foi investigada (especialmente em 2002 e 2003) devido ao não respeito às normas antissísmicas.

Apocalipse é o vocábulo que se expande como um vírus, desde o início do cataclismo. Mas apocalipse é outra coisa, tem ligação com a religião: é revelação de um plano divino, é o ômega que se reconecta ao alfa, é o cerco terrestre que, fechando-se, se entreabre para o além. Os atingidos são inocentes, mas por algum motivo Deus quis que a história terrestre se exaura assim, decepando o livre-arbítrio de cada um. Por isso, convém deixar de usar essa palavra muito escabrosa, que sela os olhos para aquilo que acontece aqui, agora: na terra, no mar.

Eventos semelhantes não são o fim do mundo, mesmo talvez fazendo alusão a isso. São, ao contrário, o fim de um mundo: de certezas, de axiomas obstinadamente cultivados. No Japão, por vias misteriosas, suscitam lembranças funestas, que têm raízes profundíssimas na sua cultura recente. O colapso das centrais nucleares remete ao trauma jamais atenuado de Hiroshima e de Nagasaki, quando Washington deu a Tóquio essa lição de inaudita violência. A terra que te sacode, a solidão do homem em tanta desordem, a natureza maligna, a morte nuclear que incumbe: nas cabeças nipônicas, é um pesadelo talvez dissimulado, mas está sempre ali, à espreita. Dizem isso os rostos que nos fixam nestas horas: petrificados, mais do que impassíveis. Vemos isso nos corpos que, de repente, se imobilizam, como se morressem em pé.

Não é verdade que os japoneses têm medos mais calmos, controlados do que os nossos. O seu grito não é o de Munch, mas é, mesmo assim, sempre um grito. Sabemos daBíblia como o cordeiro pode ser afônico, e o grito do Japão é repleto de interrogações aterradoras: por que as autoridades permitiram que centrais de 40 anos sobrevivessem? Por que não previram que o monstro podia vir também do mar? Por que são tão evasivas? Por que justamente Tóquio, que já viveu a desventura e a incorpora como uma obsessão, confiou na tecnologia e não correu a tempo de se proteger? Há grandes desastres que têm este efeito: de subverter não só as vidas, mas também vastas catedrais de teorias filosóficas consideradas seguras. A Europa conheceu horas semelhantes: ocorreu no terremoto de Lisboa, no dia 1º de novembro de 1755, e todas as teorias se desmontaram. Isso também foi uma rachadura de um mundo: fundamentado na euforia tecnológica, no otimismo, religioso ou não.

A modernidade iniciava e já tropeçava. Vinte e dois anos antes, Alexander Pope havia escrito um poema intitulado Ensaio sobre o Homem. O verso recorrente era: “What ever is, is right”: tudo aquilo que existe é bom. Mas eis que se abre a fenda de Lisboa, na lisa pele do pensar positivo. VoltaireKleistKant se perturbaram e descobriram que não era mais possível consolar-se com Pope e as teodiceias de Leibniz. Não é mais possível dizer a si mesmo, como Pangloss, no Cândido de Voltaire: avançamos “no melhor dos mundos possíveis”.

Cai também a ilusão, cara às Igrejas, da dor salvífica: não existe uma felix culpa, mas sim um mal que te pega de surpresa, injusto. Na presença do desastre ou do crime, são mais oportunas a sabedorias de Kleist, as pesquisas de Kant sobre as origens dos terremotos (Kant é o primeiro a descobrir a “raiva do mar”), o olhar de Voltaire: “Elementos, animais, humanos, tudo está em guerra. É preciso confessar: o mal está sobre a terra”. Ansioso por conforto, Rousseau escreveu incongruências em uma carta a Voltaire de 1756: “Nem sempre uma morte prematura é um mal real (…). De tantos homens esmagados sob as ruínas de Lisboa, muitos, sem dúvida, evitaram desgraças maiores, e (…) não sabemos se um só desses desventurados sofreu mais do que se, seguindo o curso natural das coisas, tivesse tido que esperar em longas angústias a morte que, ao contrário, o tomou de surpresa”.

Mas ele também fez perguntas que só a emoção acende: Lisboa não foi mal edificada, com as suas casas de 6-7 andares? Não é o homem o culpado, mais do que a natureza? Cândido sofre o terremoto e conclui: “É preciso cultivar (melhor) o próprio jardim”, ou seja, a terra, porque isso cabe ao homem. Ao homem descrito por Kant depois de 1755: “lenho torto”, “jamais maior do que o homem”.

Japão não tem às suas costas os otimismos europeus do século XVIII. Depois deHiroshima, ele se reergueu com não poucas remoções, mas com traumas indeléveis. Cinema e literatura narram esses traumas e um medo em nada calmo. Sobre essas ramificações do pessimismo, o tsunami se abateu, e Jonas ajuda mais do que Voltaire. Os japoneses já sabiam que “o mal está sobre a terra”, e aquilo que pode socorrê-los é o medo que revela, que descobre. O próprio medo que aflora há séculos, sob a forma de fantasmas, no seu cinema, na sua literatura. Nestes dias, você assiste à TV e parece ver a cidade sobre a qual se abate o indizível cataclismo contado no filme Kairo, de Kiyoshi Kurosawa: ruas e ônibus vazios, fugas rumo ao nada, e, no céu, a uma pequena distância, um imenso abutre voador (no Apocalipse, gritaria: “Olhe! Olhe!”) que voa rumo ao desastre.

Rever Kairo faz entender o abalo mental nipônico e também o nosso. O Japão tem atrás de si uma época que foi chamada de Década Perdida, entre 1991 e 2000, e que depois se prolongou em Décadas Perdidas. O filme de Kurosawa remonta a esses anos (2001) e não é cinema de horror, mas sim – à sombra do tsunami – uma visão hiperrealista. Kairo quer dizer circuito: mas é um cerco sem alfa nem ômega. O fenômeno narrado por Kurosawa é o de gerações inteiras que se entrincheiram em casa até se tornarem sombras diante dos computadores (as estatísticas falam de pelo menos um milhão dedrop-outs).

O fenômeno se chama Hikikomori: é um retirar-se, confinar-se na solidão. Nasce de inseguranças exasperadas pela crise, pelo futuro amputado. Nas paredes das casas, nos filmes, distinguem-se sombras informes da cor do carvão. Gritam “Ajude-me!”, no momento em que os jovens moribundos deixam em herança essas efígies de si mesmos.

É a silhueta escurecida do homem ao lado da escada que apareceu impressa em um muro de Hiroshima em 1945. O pesadelo se estende ao homem, assustando-o incessantemente. Vem de longe, vai para longe. Só assustando-nos ele une o passado ao presente. E nos mantém despertos, talvez.

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