No que já se tornou uma regra, o verão brasileiro mais uma vez foi permeado por desastres oriundos de chuvas. Chuvas e catástrofes são praticamente sinônimas nestes tristes trópicos. Em São Paulo, maior metrópole do país, a espiral de problemas trazidos pelas chuvas tem tornado a cidade cada vez mais insustentável, bastando alguns minutos de chuva para deixar de funcionar.
Em entrevista ao Correio da Cidadania, a urbanista e professora da FAU-USP Ermínia Maricato descreve um panorama desalentador a respeito da gestão de uma cidade, que, mesmo afundando, não traz indícios de reversão das atuais lógicas predatórias de ocupação do solo. O domínio da especulação imobiliária e a incessante construção de vias asfaltadas, que agrava o quadro de “uma das maiores áreas impermeáveis do mundo”, articulam-se a partir de poderosos grupos e interesses econômicos, que imperam cada vez mais soberanos em meio ao descaso público e à apatia social.
Em face destas constatações, a recente tomada do Ministério das Cidades por interesses políticos imediatos, assim como o estrondoso corte de verbas de que foi vítima, em pleno começo de uma nova gestão presidencial, nem mesmo chegam a ser surpreendentes. “Os governantes começam obras que eles podem acabar em quatro anos. Drenagem e sistema de transporte de massa não são obras para quatro anos. Toda a criação de uma gestão sobre o solo não é coisa de curto prazo”.
Em uma metrópole comprometida já a partir de sua concepção histórica, a urbanista é ainda veemente em dizer que o mero apontamento de erros, a partir de velhas e novas concepções de planejamento urbano, se tornou uma postura insuficiente e inócua.
A íntegra da entrevista pode ser conferida a seguir.
Correio da Cidadania: Chuva e catástrofe viraram sinônimos na cidade de São Paulo. Basta que chova em média intensidade e são milhares de pontos alagados e vias congestionadas. Onde estão as raízes estruturais dessa rotina ‘trágica’ em que se transformou a vida dos paulistanos?
Ermínia Maricato: Em primeiro lugar, se formos ver o que acontece em vários aspectos da vida da cidade, esse não é o único fenômeno catastrófico. As conseqüências da poluição do ar são, por exemplo, outro fenômeno muito negativo. Há pesquisas que fazem correlação entre mortes por problemas cardíacos, dentre outras, com a poluição, que só neste momento aparecem. Acredito que o problema das enchentes fica mais evidente porque as pessoas que andam de automóvel vêem um trânsito cada vez mais caótico, de forma clara.
A cidade de São Paulo é uma das maiores áreas impermeabilizadas do mundo. Não sou eu que acho, e sim diversos especialistas do mundo que já vieram aqui e ficaram muito impressionados com a gigantesca superfície impermeabilizada – esse é o grande problema. E tivemos políticas que trabalharam para impermeabilizar o solo e fazer o mesmo com os canais de drenagem da cidade, e que não foram fruto somente de uma política rodoviarista, de prioridade ao automóvel, mas também de uma engenharia vesga; fizeram as marginais dos rios, impermeabilizando assim o principal meio de extravasamento de sua água, as avenidas de fundo de vale, a canalização de córregos, a própria retificação do rio Tietê, que era cheio de meandros em suas várzeas…
Tivemos grandes obras que contribuíram para apressar o caminho das águas, o escoamento para as calhas, sem retenção d’água. O processo de urbanização da cidade foi acompanhado de erros, é importante dizer, não foi natural.
Agora, incidimos em novos erros, como os piscinões. Como se apressaram as águas, o que não pode ocorrer, estamos retardando o caminho delas através dos piscinões. Não estou sequer os criticando nessa situação de emergência, mas são muito discutíveis. E, além disso, não fazemos o necessário: diminuir um pouco a superfície impermeável e torná-la permeável, ter diretrizes para a cidade. É preciso retirar aquilo que impermeabiliza a cidade, não apenas fazer piscinão. A ampliação da Marginal feita pelo Serra foi completamente na contramão de tudo que deveria ser feito.
Correio da Cidadania: Isto é, por mais que os problemas aumentem, os paradigmas não mudam.
Ermínia Maricato: Exatamente. Estamos diante do rodoviarismo, a principal causa disso tudo, do desprezo impressionante pelas causas reais dos problemas, como no caso da drenagem da cidade, algo muito pouco observado.
O Alckmin até fez mais do que o Serra, mas devemos insistir na observação da questão do controle da ocupação e uso do solo, suas diretrizes, do que decorrem todos os problemas destacados.
Correio da Cidadania: Nesse sentido, não seria preciso incluir de forma clara nos debates a questão da macro-drenagem, cada vez mais inviabilizada com a impermeabilização do solo urbano, o que confronta a própria geologia de São Paulo, uma cidade erigida sobre áreas varzeanas e centenas de cursos d’água, muitos já concretados ao longo das décadas?
Ermínia Maricato: São tantos os cursos d’água (alguns deles secaram e não existem mais) que uma parte fica canalizada nas galerias, exigindo manutenção, o que é caríssimo. Há áreas na cidade em que se abrem grandes buracos nas galerias periodicamente. Aí se vê que tem uma galeria desabando, muito envelhecida, no terreno.
Portanto, tivemos, de fato, uma engenharia que comprometeu muito o crescimento da cidade. E quando falamos “precisa de área permeável”, há certos momentos em que, ao invés de um piscinão, o melhor seria liberar as margens de córregos e rios. Em alguns casos! Em outros, a solução é resolver o problema de esgoto e drenagem na beira do córrego, com urbanização, retirando algumas famílias e mantendo a maior parte. E ainda há as situações em que o jeito é a retirada de toda a população, por estar correndo risco e impedindo o córrego de exercer sua função de drenagem.
O problema é o seguinte: além de estarem ligadas ao interesse das empreiteiras, obras têm uma função muito paradigmática: é muito comum as pessoas terem a idéia de que política urbana é um conjunto de obras; política habitacional é um conjunto de obras; projetos de drenagem são um conjunto de obras. Há obras no meio disso, mas há a gestão, a liberação de solo para permeabilização…
Correio da Cidadania: Além da necessidade de um acompanhamento efetivo do que se faz em algumas áreas. Não basta a obra imediata.
Ermínia Maricato: E além do acompanhamento, o projeto é muito importante! É incrível, porque vemos os projetos de conjuntos habitacionais para a população de 0 a 3 salários mínimos repetindo exatamente os mesmos erros da ditadura militar, 30, 40 anos atrás. É impressionante vermos isso. Colocam a população fora da cidade, geram um problema gravíssimo de mobilidade e transporte, estendem horizontalmente a cidade, de forma que fique mais impermeável. Ou seja, aquela habitação cria problemas, não aponta soluções, pois agrava os defeitos da cidade.
Dependendo do projeto e de sua localização, não precisa de infra-estrutura, pois ela já está presente. O problema é que ninguém quer enfrentar o interesse dos proprietários imobiliários – sejam eles pobres ou ricos, que se diga. A questão da propriedade privada pega todo mundo no Brasil. Até mesmo a valorização da pequena propriedade já indispõe uma classe média baixa com moradores de favela…
Correio da Cidadania: Pode-se, neste sentido, afirmar que, na medida em que prevalecem os interesses privados, não se aplicam os instrumentos criados para o controle da propriedade e do uso do solo, como o Estatuto da Cidade e o Plano Diretor?
Ermínia Maricato: É muito difícil implementar instrumentos da função social da propriedade, previstos na Constituição Federal, no Estatuto das Cidades, e que precisam constar também nos planos diretores. Os PDs são vagos, não marcam as terras ociosas da cidade, que deveriam sofrer com o IPTU progressivo, que por sua vez não é definido e objetivado nos planos… Dessa forma, faltando tantas coisas, de que adiantam boas intenções?
E é preciso, neste sentido, estar muito atento para um problema que também existe no Brasil e que diz respeito ao mito do planejamento. Durante a ditadura, o Plano Diretor já foi muito prestigiado. E continua. Mas primeiro temos de falar da produção da cidade, ao invés de planejamento, que é um problema maior. E nisso os urbanistas realmente se equivocam, pois param de enxergar a cidade e ficam discutindo leis, instrumentos, como se aquilo de fato constituísse orientação para o crescimento urbano do Brasil, o que nunca foi o caso.
Lei no Brasil já é uma coisa que se aplica, sempre, de acordo com a circunstância. Portanto, é hora de olhar a produção da cidade, a ‘cidade real’, e não ficar achando que uma lei vai consertar uma cidade orientada por determinados interesses. Por melhor que seja, não vai contrariar interesses tão poderosos como os que têm levado nossa cidade pro abismo, pro caos total.
Um desses interesses é o automóvel: os planos diretores falam muito pouco disso, se formos conferir. A questão da mobilidade urbana é central à cidade e os PDs não a tomam na devida conta. Os urbanistas estão muito centrados em temas como zoneamento, por exemplo. Mas zoneamento é lei pro mercado, e mercado imobiliário no Brasil trabalha com 30% da população. Antes da gestão Lula, atingia uma proporção ainda menor da população, depois se ampliou bem pouquinho para uma classe média, por causa de seu programa de financiamento (Minha Casa Minha Vida). Mas, de toda forma, ainda é minoritária a parcela da população que se encontra neste mercado da moradia.
Deste modo, quando o zoneamento é questão central do urbanismo, já se parte do princípio errado. Porque mais da metade da população está fora do mercado imobiliário, aquele residencial, privado, capitalista, legal, formal etc.
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