A forma como a estrutura burocrática de reforma agrária foi concebida, desde a criação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) pela ditadura militar (1964-1985), é a antítese do que se entende por política pública. A excessiva autonomia das superintendências regionais, e o avanço de grupos políticos sobre elas depois da redemocratização, tiraram do governo federal qualquer capacidade de formular e executar políticas nessa área. O superintendente nacional do Incra não consegue, via de regra, penetrar nos redutos políticos que tornaram a questão agrária um negócio entre amigos em alguns Estados, em especial nas fronteiras agrícolas, onde o interesse econômico incentiva um clima permanente de conflito. É impossível controlar políticas e evitar desvios numa estrutura como essa. O comentário é de Maria Inês Nassif e publicado pelo jornal Valor, 10-03-2011.
Segundo reportagem de Roldão Arruda publicada no jornal “O Estado de S. Paulo”, na edição de ontem, o governo Dilma Rousseff estuda formas de aumentar o controle sobre as superintendências regionais do Incra. Isso pode encontrar resistências corporativas de funcionários do instituto, que atuam na ponta burocrática, e de setores que detém o controle regional da política agrária nos Estados em que a pressão por indicação do superintendente tende a favorecer grupos interessados em legitimar a ocupação de terras públicas ou de áreas de preservação ambiental. Aliás, nessas regiões, a questão ambiental e a agrária andam tão próximas que é impossível elaborar uma política de meio ambiente eficaz sem resolver com muita clareza o problema de titularidade da terra.
A questão tende a ser mais polêmica porque faz parte de um plano amplo de reestruturação, que poderá transferir parte das atribuições do Incra para o Ministério do Desenvolvimento Social, articulando-as com a segunda fase do programa de combate à fome. Nesse caso, tendem a reagir os setores ligados à reforma agrária, que não têm nenhum interesse em despolitizar esse debate. A luta pela terra, para os movimentos sociais, é em si uma questão política. Negar isso seria retirar o conteúdo classista do embate pela distribuição da terra concentrada em mãos de grandes proprietários e pela primazia da pequena propriedade na distribuição das terras em poder do Estado. Seria jogar para o Ministério do Desenvolvimento Social, que atua na área de políticas compensatórias (não se pode dizer que meramente sociais, mas menos politizadas), funções que hoje estão sob a responsabilidade do Ministério do Desenvolvimento Agrário. A criação do MDA, se não representou, de fato, a valorização da política de distribuição de terras, ao menos simbolicamente marcou um território para as lutas camponesas, em contraposição a um Ministério da Agricultura que historicamente tem privilegiado a grande propriedade.
Ainda assim, o controle do governo federal sobre as superintendências regionais do Incra é um ganho para os movimentos sociais. Desde a redemocratização, os setores conservadores ligados à terra – no caso brasileiro, à grande propriedade – literalmente aparelharam o Ministério da Agricultura. Isso aconteceu também nos governos do petista Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006 e 2007-2010). Paralelamente, o PMDB, que foi da base do governo também nos governos anteriores, do tucano Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 2 1999-2002), manteve o controle sobre superintendências estratégicas do Incra, como a do Pará e do Mato Grosso do Sul. Nos Estados onde aliados conservadores dominam a estrutura regional do Incra, as superintendências são impenetráveis para os movimentos sociais que militam pela reforma agrária.
Assim, os setores ligados à grande propriedade, nos últimos governos, mantiveram a faca e o queijo na mão. De um lado, tinham controle inconteste sobre as decisões do Ministério da Agricultura. De outro, no Ministério do Desenvolvimento Agrário, teoricamente território dos movimentos sociais, mantiveram o poder de decisão sobre a execução da reforma agrária, valendo-se de posições nas superintendências do Incra em fronteiras agrícolas, áreas onde a luta pela terra – na sua acepção política – é mais literalmente sangrenta no país.
Esse diagnóstico era mais do que evidente no governo de Lula, mas a base governista era menor. O ex-presidente, além de ter vocação para a gestão por conflito, tinha uma dependência maior do PMDB do que tem hoje a presidenta Dilma Rousseff. Uma base mais ampla no Congresso dá alguns confortos, inclusive a de bancar mudanças administrativas que não interessam a banda direita do governo de coalizão. No caso do Pará, talvez o mais crítico, facilita também o afastamento do chefe pemedebista Jader Barbalho, cuja eleição para o Senado foi impugnada pela Justiça Eleitoral.
As superintendências regionais do Incra, portanto, não se situam numa mera disputa partidária entre o PT e o PMDB, não simplesmente um mero desejo de consumo da fisiologia. A disputa é política, onde estão em jogo um enorme poder da bancada ruralista no Ministério da Agricultura, de um lado, e do outro o poder final de veto sobre políticas de reforma agrária pela ocupação de superintendências por setores ligados aos interesses das grandes propriedades. A disputa por cargos de segundo escalão pode se dar no campo da fisiologia, mas tem enorme repercussão no conjunto das políticas públicas.
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