A revista Veja, em matéria publicada no último dia 7 sobre a demarcação da terra indígena Governador (Amarante/MA), consolida [através da palavra escrita], o preconceito e graves inverdades sobre a realidade do povo indígena Pukobyê-Gavião. Mais uma vez, esse veículo de comunicação cumpre o seu papel de defender os interesses políticos e econômicos de uma classe que sempre explorou e continua explorando os recursos naturais dos territórios indígenas. Lamentavelmente, a revista continua prestando um desserviço à população, alimentando velhos preconceitos contra os povos indígenas e a demarcação dos seus territórios.
A matéria afirma que no município de Amarante habitam três povos indígenas e que a nova demarcação da terra indígena Governador elevaria para 75,7% o percentual de terra indígena naquele município. Essa inverdade transmitida à população é uma clara tentativa de colocar a sociedade que não conhece a região contra as comunidades indígenas e reforçar o velho preconceito de que haveria “muita terra para pouco índio”.
Pode parecer “absurdo” à revista Veja “dar tanta terra a tão poucos índios”, obviamente se a ótica para análise não leva em conta a especificidade da cultura dos povos indígenas e sim a terra como mera mercadoria ou insumo para produção agropecuária que reafirma o modelo de expansão do capital. Comparar a área do “Central Park” nova-iorquino ou a área da cidade de São Paulo demonstra claramente o viés distorcido e tendencioso pelo qual a revista pretende apresentar a questão, ao mesmo tempo em que parece perfeitamente aceitável criar 500 cabeças de gado num “sítio” no qual ainda se cultiva feijão, arroz e mandioca. A terra deveria servir ao gado ou a pessoa humana?
Não se questiona aqui a possibilidade de um “sítio” ser altamente produtivo, muito pelo contrário. Porém, sempre e desde que tal sítio não esteja dentro dos limites de terras indígenas e essa propriedade atenda à função social, conceito constitucional. Aliás, a Constituição Federal é cristalina também a respeito de títulos concedidos sobre as terras indígenas: “são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo (…)” (parágrafo 6º. do art. 231).
O povo Pukobyê-Gavião vive atualmente em seis aldeias: Governador, Riachinho, Aldeia Nova, Rubiácea, Monte Alegre e Água Viva, todas no interior da Terra Indígena Governador, homologada em 1982 como terra tradicionalmente ocupada, com área de 42.054,73 hectares. Ao contrário do que tem sido noticiado pela mídia, a população Pukobyê-Gavião é bem mais significativa, chegando a aproximadamente mil pessoas vivendo nas aldeias citadas, quase o dobro do número estimado pela revista.
O povo Pukobyê-Gavião, contrariamente ao que também afirma a Veja, sem citar sua fonte, sempre viveu nessa região, sendo que apenas parte desse grupo migrou para o estado do Pará. Essa informação pode ser constada nos escritos de Curt Nimuendajú, importante antropólogo que esteve em 1929 nas aldeias Recurso (hoje, Governador) e São Feliz (já extinta) e constam do livro “The Eastern Timbira”, edição 1946, na página 19. Outra fonte que documenta a histórica presença dos Pukobyê-Gavião na região é o livro de Adalberto Franklin, “Breve história de Imperatriz, MA” (Ética, 2005).
Não é verdade que o povo Pukobyê-Gavião não saiba ou não queira a demarcação do seu território. As falas das lideranças indígenas precisam ser entendidas no contexto de um Povo que está com medo, ameaçado incessantemente de ter suas aldeias invadidas e incendiadas como já aconteceu. Povo que não recebe mais atendimento médico nos hospitais e que tem receio de transitar pela cidade de Amarante.
A forma como a terra foi homologada, em 1982, atendeu aos interesses de pecuaristas que vieram de outras regiões, principalmente da Bahia, Minas Gerais e São Paulo, mutilando o território dos indígenas, pois áreas importantes para a sobrevivência física e cultural do Povo foram deixadas de fora da área homologada. A nova demarcação da terra é, portanto, uma correção histórica de um direito coletivo garantido na Constituição Federal e na legislação internacional. Na realidade, a demarcação que ora a Funai está a realizar – cumprindo com seu dever constitucional na forma do Decreto 1775/96 (e não fazendo meros “projetos de ampliação” apresentados como absurdos) – é a realização da garantia de vida digna para o povo Pukobyê-Gavião no presente, mas também para suas futuras gerações, resguardando suas formas próprias de organização e reprodução física e cultural, de acordo com seus usos, costumes e tradições.
É perfeitamente incabível que a revista afirme diversas vezes que a Funai quer “dar” ou “entregar” aos índios terras: trata-se de obrigação imposta ao órgão indigenista pela Lei Magna brasileira. Da mesma forma se equivoca a revista ao afirmar que territórios dos municípios “viram” terra indígena, quando na verdade se tornam terras de propriedade da União por força da constatação da anterioridade da ocupação indígena – muito anterior ao tempo alegado pelos agricultores entrevistados, cuja permanência de décadas contrasta de forma absurda com a ocupação milenar do povo Pukobyê-Gavião.
É verdade que os indígenas mantêm uma relação cordial com os não indígenas de Amarante, têm a capacidade de superar o preconceito e a discriminação a que são submetidos, além da invasão dos seus territórios para viver em relativa paz. É também verdade que os indígenas precisam deixar seus cartões retidos nas mãos dos comerciantes de Amarante para poder fazer suas compras.
Eventuais ocupantes que preencham os critérios do INCRA devem ser beneficiados com as políticas públicas de assentamento da reforma agrária. O que não é admissível é acirrar conflitos entre pequenos posseiros e indígenas para esconder e favorecer interesses de grandes proprietários.
A revista Veja prestaria um grande serviço à nação se, ao invés de desinformar sobre a questão indígena – que desconhece antropológica e juridicamente – cobrisse as mazelas do avanço dos grandes projetos agroexportadores (latifúndio, grilagem, monocultivos, pecuárias, hidroelétricas) que expulsa comunidades inteiras, criminaliza e assassina suas lideranças, como exemplo, o despejo da comunidade Cruzeiro, no município de Palmeirândia/MA, ocorrido no dia 21 de novembro. Duzentas famílias quilombolas foram despejadas de uma terra de aproximadamente mil hectares, que está em processo de desapropriação no INCRA. Mesmo se tratando de uma comunidade centenária, o Poder Judiciário deu ordem de despejo, deixando as famílias desabrigadas e com suas plantações destruídas, porque de uma hora para outra “apareceu” um único “dono”. E como ficam essas famílias? De onde vão tirar seu sustento? Por que uma única pessoa pode ser dona de uma terra e uma comunidade, que vive de forma coletiva, não pode? Sem dúvida, para manter essa realidade de exclusão, violência e despejos é necessário criminalizar, reforçar preconceitos e discriminação e tornar invisíveis as comunidades tradicionais sedimentando cada vez mais o modelo do latifúndio, da renda e do lucro nas mãos de uns poucos.
Seria mesmo muita terra para pouco índio ou muita riqueza para poucos?
São Luis (MA), 20 de dezembro de 2010.
Conselho Indigenista Missionário – Regional Maranhão
http://www.cimi.org.br/?system=news&action=read&id=5213&eid=293
Os agro-reformistas sempre utilizaram do argumento de que é injusto alguém ter tanta terra porque seria justo quando é índio? Só por causa da cultura? E a cultura ocidental, vale menos? Será por que a cultura ocidental tem o valor dos ensinamentos de Nosso Senhor Jesus Cristo e por isso não deve ser respeitada?