Karl Marx: testemunho de uma época que nos pertence

“A obra de Marx pode ser lida como um relato de longo prazo e como um testemunho direto de uma época que nos pertence inteiramente e que não acabou”. A análise é do historiador italiano Lucio Villari, professor da Università degli Studi Roma Tre, em artigo para o jornal La Repubblica, 17-12-2010. A tradução é deMoisés Sbardelotto. Eis o texto.

“O mais triste neste momento”, escrevia Marx à filha Jenny em 1881, “é ser velho. O velho pode apenas prever, ao invés de ver”. E, no ano seguinte, poucos meses antes de morrer, a um amigo que lhe propunha uma edição completa das suas obras, Marx respondia que devia “ainda escrevê-las”.

Essas reflexões, cansadas e amargas, têm um sentido. Marx pode, de fato, ser também relido, como se faz com os clássicos da literatura ou da poesia, sobretudo porque a sua obra maior, o Livro Primeiro de “O Capital” (o segundo e o terceiro foram terminados e editados por Friedrich Engels), foi escrita – são palavras suas – segundo um projeto fundamentado em “considerações artísticas” e depois porque essa obra foi, por mais de um século, um ponto de referência para milhões de pessoas. Embora tenha sido lida por uma minoria.

Ainda quando o livro apareceu em 1867, ele havia sido acolhido pelo silêncio. Depois, tudo irá mudar, e Marx se tornou “marxismo”. Na verdade, Marx não fez nada para se tornar um clássico, porque, nos seus escritos, há um pensamento assistemático, provocador, semelhante em muitos aspectos ao de Diderot, sem a ordem e o sentido fascinante de estabilidade que só os clássicos transmitem.

No entanto, tanto ele quanto Diderot (Marx gostava muito das ascendências doIluminismo) viram e descreveram com clareza coisas muito importantes. E isso decretou a sua imortalidade. Marx viu um mundo que não se concluiu com o tempo e que se revelou principalmente no nosso: o mundo também misterioso da produção capitalista e a sua variabilidade social e cultural. Não por acaso citava o Mefistófeles de Goethe (“o espírito que sabe ver a outra face da moeda”) ou se referia às incertezas e dúvidas de tantos personagens shakespearianos.

É esse ver também a outra face das coisas importantes e não temporâneas (de uma alma singular ou da grande história de uma sociedade) que faz de uma obra um clássico. O seu erro esteve, ao contrário, nas previsões sem dúvidas. Se ele tivesse previsto, por exemplo, ao invés da vitória do socialismo, os lugares onde a sua obra mais estaria difundida no século XX, ele teria economizado desânimo. Portanto, a amarga confissão a Jenny deve ser interpretada como um momento de melancolia pela dificuldade de conseguir ser sempre contemporâneos daquilo que acontece.

Portanto, só uma particular sensibilidade literária (as “considerações artísticas”) permitiu a Marx penetrar nas estruturas proteiformes e épicas do “Capital” e das “relações de produção e de troca que lhe correspondem”. E como em um poema mitológico ou em um romance épico, os protagonistas tornam-se também expressões simbólicas e abstratas do relato, assim, no teatro do “Capital”, o olhar agudo e crítico de Marx não se volta para indivíduos capitalistas.

Eis uma observação sua pouca conhecida a respeito: “Uma palavra para evitar possíveis mal entendidos. Não retrato, de fato, com luz rósea as figuras do capitalista e do proprietário fundiário. Mas aqui se trata das pessoas apenas enquanto são a personificação de categorias econômicas, encarnação de determinadas relações e de determinados interesses de classe. O meu ponto de vista, mais do que nunca, pode tornar o indivíduo responsável por relações pelas quais ele permanece apenas como criatura. Embora, subjetivamente, possa elevar-se acima delas”.

Essa especificação é um toque de classe (burguês) congenial à cultura da qual Marx estava embebido, mas permite entender também a inteligência aberta da sua análise da sociedade moderna europeia analisada em um arco histórico muito amplo. Ele diz isso no prefácio, que se encerra com uma citação de Dante, a “O Capital”: “O fim último do livro é o de revelar a lei econômica do movimento da sociedade moderna”.

Portanto, uma obra de história (a Sétima Seção do Livro Primeiro, dedicada à “acumulação originária”, é um grande afresco moral e não só econômico e político da história europeia entre 1500 e 1700), que hoje pode ser lida como o testemunho direto de uma época que nos pertence inteiramente, porque ainda não está concluída. Foi esse um método seguido por Marx em todos os seus escritos políticos, econômicos, filosóficos, de teórico dos direitos e das liberdades dos indivíduos e dos povos, de jornalista, de observador atento. O método “marxista” de analisar o sucesso da sociedade burguesa para ver as suas profundas contradições, para exaltar a liberdade e a libertação dos homens das opressões políticas e das necessidades degradantes e contra toda “metamorfose regressiva” sempre em emboscada na “ordem capitalista”. É essa, de fundo, a sua “classicalidade”.

Se essas reflexões parciais têm um fundamento, então pode ser útil compará-las com o recente livro de Nicolao Merker (“Karl Marx. Vita e opere”,  Ed. Laterza, 257 páginas). Poderia ser a inesperada (dados os tempos) ocasião para reabrir também na Itália (como já ocorre principalmente no mundo anglo-saxão) o discurso sobre Marx, dando novas perspectivas de leitura aos seus escritos e à sua vida privada, que foi ao mesmo tempo complexa e dramática. Assim como é sempre a dos autores clássicos pelos quais valem os versos latinos que Marx gostava muitas vezes de repetir: “sic vos non vobis“.

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