A barbárie como espetáculo

Mídia comercial trata como guerra a crise na Segurança Pública, lucra com a espetacularização e cria falsas dualidades

Leandro Uchoas, do Rio de Janeiro (RJ)

Entre tantos protagonistas na crise da Segurança Pública fluminense, um se destacou: a mídia comercial. As emissoras de TV e rádio e os jornais de grande circulação conseguiram criar uma realidade à parte. Nela, os oficiais da polícia que mais mata e que mais morre no mundo tornaram-se heróis. A população acuada nas comunidades, com risco de ser atingida por balas perdidas, foi retratada como um conjunto de cidadãos grato à chegada “das forças do bem”. O pânico ganhou contornos de lucrativo espetáculo, transmitido ao longo de tardes inteiras. A cobertura televisiva assemelhou-se à transmissão de conflitos como o do Iraque. E a linguagem escolhida também foi a da guerra. Poucas vezes o jornalismo brasileiro esteve tão próximo da ficção.

A barbárie dos traficantes, e a reação policial, foram chamados pelos veículos de “Guerra do Rio”. Cláudia Santiago, do Núcleo Piratininga de Comunicação, critica a opção linguística. “Guerra de quem contra quem? Uma guerra na qual os inimigos são os traficantes das favelas, não por coincidência pobres, negros e candidatos a uma vida curtíssima. Não se lê nenhuma linha sobre os grandes chefes do tráfico: banqueiros, juízes, chefões políticos e militares, advogados”, acusa. Todo o linguajar midiático emprestou expressões da guerra. Inocentes assassinados pela polícia viraram “baixas civis”. A Vila Cruzeiro se transformou no “bunker do tráfico”. A data em que a polícia invadiu a favela tornou-se o “Dia D” – referência à chegada dos aliados à Normandia, na Segunda Guerra, decisiva para a derrota da Alemanha nazista.

A tomada do Complexo do Alemão foi retratada como uma vitória inédita, ponto de virada na história da cidade. E com cenas cinematográficas. As bandeiras do Brasil e do Rio de Janeiro, levantadas no alto do conjunto de favelas, lembraram a chegada do homem à lua. “O triste é que este espetáculo midiático faz com que muita gente de bem torça pelo extermínio destes jovens, como torcem pelo Rambo nos filmes de Hollywood. O fato é transformado em um grande espetáculo para ganhar a adesão das pessoas. E ganha”, lamenta Cláudia. O apoio à ação policial, considerada de sucesso pelos jornalistas e por boa parte dos comentaristas ouvidos pelos grandes veículos, aparentemente, encontrou eco junto à população do Rio.

Militarização legitimada

“A cobertura da TV privilegia a dramatização. E afirma-se que esse vai ser o ponto de inflexão daqui pra frente. Um equívoco. Lamento que esses grandes veículos estejam com essa posição”, criticou Ignácio Cano. Sociólogo vinculado ao Laboratório de Análise de Violência da Uerj, Ignácio é um dos estudiosos de Segurança Pública mais frequentemente ouvido em períodos de crise. Para José Cláudio Alves, vice-reitor da UFRRJ, “amplia-se muito a lógica militar quando a execução sumária, elevada à categoria de política pública, é legitimada pela mídia.”

Outra fonte histórica dos grandes veículos é Luiz Eduardo Soares, ex-secretário, nacional e estadual, de Segurança Pública. Pela primeira vez, o intelectual desligou o celular, para não atender a jornalistas. “Não posso mais compactuar com o ciclo sempre repetido na mídia: atenção à segurança nas crises agudas e nenhum investimento reflexivo e informativo realmente denso nos intervalos entre as crises”, escreveu, em artigo. E em outro trecho: “todo pensamento analítico é editado, truncado, espremido – em uma palavra, banido –, para que reinem, incontrastáveis, a exaltação passional das emergências, as imagens espetaculares, os dramas individuais e a retórica paradoxalmente triunfalista do discurso oficial”.

Por fim, no mesmo artigo, o sociólogo critica a falsa dualidade criada pela mídia, entre policiais e traficantes. “Não existe a polaridade. Construí-la – isto é, separar bandido e polícia – teria de ser a meta mais importante e urgente de qualquer política de Segurança digna desse nome”. Segundo Soares, não há ação de criminosos, no Rio de Janeiro, da qual estejam ausentes segmentos corruptos da polícia. Seria justamente essa interpenetração entre tráfico – ou milícia – e polícia que faz com que a ilegalidade permaneça viável. Além disso, o abismo de força bélica entre as duas forças em conflito, polícia e tráfico, também é atenuado quando se usa o termo “guerra”. O poder de fogo dos policiais é muito maior.

Saques e diáspora

Um bom exemplo da cobertura ficcional do conflito foi a invasão policial da Vila Cruzeiro. O chamado “Dia D” foi celebrado pelos veículos. A polícia teria obtido grande vitória ao ocupar uma favela onde o poder público não entrava há três anos. Segundo os jornalistas, a população estaria aliviada, recebendo os soldados com louvor. E a polícia estaria fazendo uma varredura na comunidade, atrás de drogas e armas. Isabel Cristina Jennerjahn esteve na comunidade e trouxe um relato bastante distinto – embora reconheça que a sensação local, em grande parte, era mesmo de alívio. Integrante da Rede de Movimentos e Comunidades contra a Violência, ela relata que boa parte dos moradores está indo embora da favela.

Segundo Isabel, algumas casas teriam sido saqueadas pela Polícia Militar (PM) e o Bope estaria impedindo familiares de traficantes mortos de buscarem seus corpos na mata – assassinatos esses não veiculados pela TV. Os jornais de domingo, dia 28, preferiram divulgar um projeto do prefeito, Eduardo Paes (PMDB), anunciando o desejo de urbanizar a favela. Movimentos e ONGs desconfiam que no Complexo do Alemão esteja havendo casos semelhantes. A diáspora foi ainda maior ali do que na Vila Cruzeiro. Teme-se que bandidos desarmados tenham saído normalmente, passando pela barreira policial, como os outros moradores. “Vão haver novamente assassinatos, e não vai haver investigação”, suspeita José Cláudio. Também há críticas contra a decisão dos veículos de não citar nomes de facções do tráfico.

http://www.brasildefato.com.br/node/5236

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