Márcio Mello Casado( *)
A Folha de São Paulo ajuizou em 25 de outubro de 2010 uma ação cautelar no Supremo Tribunal Federal (nº 2727), cuja intenção é obter o acesso às cópias do processo penal número 366/70, no Superior Tribunal Militar, em que foi ré a candidata Dilma Roussef.
A Ação cautelar foi distribuída à Ministra Cármen Lúcia. Ao receber o processo, ela determinou que fosse ouvido o Presidente do Superior Tribunal Militar, bem como que a Folha juntasse cópias do recurso extraordinário que citava no corpo da petição inicial.
O Presidente do Superior Tribunal Militar e a Folha atenderam aos pedidos da Ministra e a cautelar, neste momento, está nas mãos dela e pode ser despachada a qualquer momento.
POR QUE A FOLHA, NA ANTE-SALA DO VOTO, QUER TRAZER DE VOLTA AO DEBATE O PROCESSO IMPOSTO PELA DITADURA MILITAR CONTRA A CANDIDATA DILMA ROUSSEFF?
Carta Maior, cujo nome é inspirado justamente na Constituição Federal do país, abriu espaço para que um Amicus Curiae – um amigo do tribunal ou, em termos literais, um amigo da corte – possa expor a verdadeiro objetivo desta ação, aliado à falta de fundamento legal para o seu pleito.
A figura do amicus curiae, o amigo do Tribunal, tornou-se rotineira no sistema jurídico através da Lei 9.868/99, art. 7º, Parágrafo 2º (O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades).
Em uma medida cautelar como a que a Folha ingressou, o amicus curiae formal, dificilmente seria aceito, visto que a admissão dele estaria vinculada às Ações Direta de Inconstitucionalidade e Declaratória de Constitucionalidade.
No entanto, um amigo do Tribunal, alguém que tenha interesse em informá-lo e, porque não, também à sociedade, pode fazê-lo fora dos autos.
Desorganização ou má intenção?
A Folha está preocupada em informar o cidadão brasileiro sobre a vida e a militância da candidata Dilma Rousseff durante a ditadura militar. Tais informações, segundo alega, somente podem ser obtidas por meio do acesso aos arquivos que estão no Superior Tribunal Militar.
Há, aí, desde logo, um problema ético. A atuação da candidata Dilma Rousseff durante a ditadura não pode ser medida pela régua de um processo dirigido pela supremacia do torturador sobre a vítima indefesa.
Qualquer informação contida nestes arquivos estará parcial ou, mais provavelmente, contaminada na íntegra por esse indutor de violência conhecida e comprovada. Ademais, qualquer condenação que tenha sido imposta à candidata Dilma, por um Estado de Exceção, foi acobertada pela Lei da Anistia.
Mas a Folha está preocupada em informar o cidadão brasileiro, o que, além de louvável, não deixa de ser uma surpresa. Justo neste momento, a Folha resolveu colocar-se como defensora da liberdade de imprensa e reputa como de indiscutível interesse público informações contidas em um processo penal dirigido e com provas obtidas pelas mãos e métodos criminosos.
Ressalvadas as deformidades das informações aí contidas, é evidente, no entanto, que se trata de documento –até para a ilustração do regime que o promoveu– dotado de algum interesse histórico. O acesso a ele deveria ser franqueado a todos, assim como todos os arquivos da época da ditadura deveriam ser abertos ao público, que tem o direito à memória e à história da sociedade em que vive.
Visto desse ângulo, teria pertinência o pedido da a Folha de acesso aos autos, justo neste momento?
A resposta é não, por dois motivos:
a) em primeiro lugar porque ela já obteve o que reivindica. Em 12 de Marco 2009, por meio da jornalista Fernanda Odilla, o jornal já extraiu cópias do processo em questão;
b) sobretudo, porém, não há interesse público algum neste material datado e induzido pelo regime de exceção, no momento. Exceto o interesse unilateral da Folha e, eventualmente, o da própria candidata Dilma Rousseff que, todavia, jamais se manifestou nesse sentido.
Há, no entanto, circunstâncias antecedentes que autorizam suspeitar das motivações mais profundas que orientam o pleito do veículo paulista.
A Folha, em 2009, produziu a matéria intitulada: “Grupo de Dilma planejava seqüestrar Delfim”. Esta matéria foi rechaçada, de forma veemente, pelo jornalista Antonio Roberto Espinosa (http://www.torturanuncamais-rj.org.br/noticias.asp?Codnoticia=214&ecg=).
Ou seja, quando teve acesso aos documentos do processo da candidata Dilma, a Folha já fez deles um uso distorcido que reforçam as suspeitas em torno dessa segunda investida, em curso há dois meses.
A verdade é que os reais interesses que movem a Folha não são pautados pelo interesse público. A Folha deseja, como já o fez, elaborar matéria depreciativa, partindo de dados (que já tem, porém legitimados pela autorização desta Corte) produzidos há quarenta anos por métodos e motivações de um regime de exceção instruído com elementos de prova produzidos por criminosos travestidos de agentes do Estado.
Interesses individuais foram argüidos pelo STM ao negar o novo acesso, no meio da campanha eleitoral. Entretanto, estes são os direitos mais caros aos cidadãos e que são os pilares de uma democracia: privacidade, dignidade da pessoa humana, honra e imagem. Ou um candidato à Presidência da República não pode ter tais direitos preservados? Evidente que sim. A candidata Dilma é, antes, a pessoa humana Dilma.
Ela estava no Brasil, lutando pela democracia. Foi perseguida, presa, torturada e processada por seus algozes. A Folha quer agora surfar eleitoralmente nos resultados de um processo violento pautado pelo pau-de-arara, choques e agressões morais.
A Folha jamais poderá ter acesso a tais documentos? Estamos convencidos que o acesso deve ser franqueado; a Folha pode produzir a matéria que bem entender sobre a candidata Dilma ou qualquer outro candidato. Mas, neste momento, o que está sendo chamado de liberdade de imprensa serve justamente para fraudar o processo da liberdade democrático em um de seus mais sagrados momentos: o voto universal dos brasileiros e brasileiras.
Sejamos francos, a Folha tem os documentos do processo. Certamente, não os perdeu. Deseja novas cópias para esquentar e legitimar a matéria já citada que, no ano passado, foi ridicularizada pela opinião política do país.
Nem a revista Veja, que pediu cópia do mesmo processo, em 26 de fevereiro de 2010, por meio do repórter Luiz Otávio Bueno Cabral, teve coragem de prosseguir na empresa de violar a vida privada, a intimidade, a honra e a imagem da candidata Dilma.
Dentro de uma idéia de proporcionalidade e choque de interesses, todos protegidos pela Constituição Federal (liberdade de imprensa, dignidade da pessoa humana e liberdades individuais), neste momento, parece-nos que liberar para cópias um processo penal, cuja processada já foi anistiada, é subverter a Carta Maior. Depois de publicada a matéria, nenhuma Ação de Indenização será capaz de restabelecer não só a honra da candidata, mas o processo eleitoral que pode restar irremediavelmente viciado. Tais riscos, certamente, estão acima dos interesses INDIVIDUAIS da Folha.
Não cabe a Cautelar no STF
Do ponto de vista processual, a cautelar apresentada pela Folha não é cabível. E quem afirma isto é o próprio Supremo Tribunal Federal, em inúmeros julgados anteriores, que culminaram na edição das súmulas 634 e 635, as quais, expressamente, determinam, sucessivamente: “Não compete ao Supremo Tribunal Federal conceder medida cautelar para dar efeito suspensivo a recurso extraordinário que ainda não foi objeto de juízo de admissibilidade na origem” e “Cabe ao Presidente do Tribunal de origem decidir o pedido de medida cautelar em recurso extraordinário ainda pendente do seu juízo de admissibilidade”.
Ademais, o próprio recurso extraordinário apresentado pela Folha é completamente vazio de fundamento, eis que se opõe a pedido de vistas, regimentalmente previsto no STM. O mérito do mandado de segurança da Folha ainda não foi decidido. Haverá supressão de um grau de jurisdição se a cautelar pretendida pela Folha for concedida.
Qualquer medida cautelar necessita, para sua concessão, além de fumaça de um bom direito (e aqui não há nenhuma) do denominado perigo na demora. O caso em exame traz um pedido da Folha para ter acesso a fatos ocorridos há quarenta anos atrás, aos quais –repetimos– ela já teve acesso; quer agora usar esta Corte para legitimar o que já possui! Pior, são fatos, do ponto de vista do Estado Democrático de Direito, não mais relevantes, visto que a eventual condenação foi objeto de anistia.
Conclusão
Entre fraudar o processo eleitoral e expor desnecessariamente a cidadã Dilma Rousseff ou “dar um novo xerox” à Folha , que almeja um endosso desta Corte para seus objetivos escusos, não se podem ter dúvidas: preserva-se o processo democrático e a pessoa humana.
(*) Advogado. Mestre em Direito PUC/SP. Doutorando em Direito PUC/SP.
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