PNDH: o padre, o delegado e o coronel

Quando setores contrários às propostas presentes no 3º Programa Nacional dos Direitos Humanos começaram a dar faniquitos públicos no início do ano – fato que achei extremamente instrutivo – postei minha opinião neste espaço, coisa que trago novamente.

As críticas colocaram lado a lado setores da igreja, dos militares e do agronegócio, que possuem em suas fileiras alguns dos maiores bastiões do conservadorismo e do atraso. É realmente o país da piada pronta, como diz o grande José Simão. Lembra muito aqueles microcosmos de poder do Brasil profundo, presentes nas obras de Dias Gomes: o padre, o delegado e o coronel, tomando uma cachacinha na (ainda) Casa-grande e discutindo sobre os desígnios do mundo. Ou pelo menos do vilarejo. Pra frente, Sucupira!

E foi de outro José Simão – bispo de Assis e responsável pelo Comitê de Defesa da Vida de São Paulo da CNBB – que veio uma frase interessante sobre o assunto: “Vemos nessas iniciativas uma atitude arbitrária e antidemocrática do governo”.

Com tanta atitude arbitrária e antidemocrática do governo para ser criticada, a igreja foi pinçar logo o PNDH, que é um exemplo de construção coletiva (foi montado com a participação de milhares de pessoas, centenas de delegados e dezenas de conferências em todo o país) e um alento de civilização em nosso país de mentalidade tão tacanha. Traduzindo as reclamações da igreja: “Vemos essas iniciativas como uma forma do Estado ter independência e não seguir as regras que ajudamos a construir ao longo de centenas de anos”.

Imagine só, onde já se viu duas pessoas do mesmo sexo se desejarem e desejarem ter os mesmos direitos dos heterossexuais? E as mulheres pobres que fazem aborto, então! Querem se ver livres da cadeia! E o pior de tudo: tirar os crucifixos e os santinhos de estabelecimentos públicos, como tribunais e parlamentos. O que esse país pensa que é? Laico?!!!

Os verde-oliva por sua vez bufaram com a criação de comissão que pretende apurar o desaparecimento de opositores da ditadura militar (1964-1985) e as torturas praticadas à exaustão nos porões do regime. Os milicos consideram o programa “insultuoso, agressivo, revanchista”. Fiquei esperando para ver se também não diriam “subversivo, anti-patriota, comunista, feio, bobo, chato…” Querem ter o direito de continuarem batizando ruas, praças e viadutos com os nomes de açougueiros que trouxeram muita dor nos anos de chumbo – uma das propostas era acabar com essa pouca vergonha. Mas isso é perfumaria comparado com o desejo de militares pró-silêncio de manter no anonimato as atrocidades e os nomes de muitos desses carniceiros, que guardam a memória do que aconteceu com desaparecidos políticos.

E o então ministro da Agricultura também trouxe abobrinhas da horta: “O decreto [do programa] aumenta a insegurança jurídica no campo. Da forma que está colocado, ele traz esse preconceito implícito em relação a agricultura comercial ou ao agronegócio, como também aumenta a insegurança jurídica que nós já temos em função de várias outras questões.” Ele está certo! Afinal de contas, com tantos indígenas, quilombolas, trabalhadores rurais, caiçaras, riberinhos que foram expulsos de suas terras e estão querendo voltar, muitos latifúndios vivem mesmo uma grande sensação de insegurança. Cadê os direitos humanos para os humanos direitos? Por que só discutem direitos humanos para essa gente parda, rota e suja? Cadê os direitos humanos de quem ganha tutu na base da exploração de terras públicas ou da especulação fundiária? Cadê os direitos humanos das usinas de cana que usam trabalho escravo e, pobrezinhas, se vêem vítimas de boicotes do mercado maldoso?

Por fim, a imprensa tinha o dever de trazer à tona todas as críticas ao plano, fazer ponderações, levantar debates. Era um plano de propostas e não os Dez Mandamentos, cabia o contraditório e eventuais mudanças, como acabou ocorrendo. Mas parte da mídia misturou editorais e reportagens, aí o caldo desandou. Além disso, houve veículos de comunicação que só entraram no tema a reboque das manifestações de setores da sociedade e não como pauta própria. Textos, como os de Fernando Rodrigues, da Folha, que leu o conteúdo para divulgar matérias sobre o programa na época, foram raridade.

Em suma, se todo lançamento de PNDH gerasse um debate nacional sobre os direitos humanos em um país que tem vergonha de defender direitos humanos, proponho que não esperemos mais sete anos e tenhamos mais um quarto já. No mínimo, fará com que o padre, o delegado e o coronel se manifestem novamente, lembrando ao Brasil que ele é brasil.

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