Na virada dos anos 1920 para 1930, época de crise capitalista e da trágica ascensão dos fascismos, o dramaturgo alemão Bertolt Brecht escreveu a peça Santa Joana dos Matadouros*. Nela, está implícita a comparação entre o produto das grandes indústrias de carne – as salsichas, por exemplo – e os trabalhadores, que também são moídos por suas engrenagens. Ou explícita, no coro dos trabalhadores às portas fechadas dos frigoríficos, que se comparam à matéria-prima bovina daquelas fábricas ao expressarem toda a contradição entre recusarem aquelas condições indignas e a necessidade do emprego para a sobrevivência:
Somos setenta mil trabalhadores nas Indústrias de Carne Lennox
E não podemos viver nem mais um dia com este salário de fome
Que ontem, por cima, voltou a baixar.
(…)
Não é de hoje que este trabalho nos repugna
Que esta fábrica nos suplicia, e jamais
Não fosse a soma de horrores da fria Chicago
Nós estaríamos aqui. (…)
Eles estão pensando o quê? Pensam
Que somos gado
Que aceitamos tudo? Nós
Somos trouxas? Antes de morrer! Nós
Vamos embora daqui imediatamente silêncio Já não são seis horas?
Porque não abrem os portões, seus exploradores
Aqui
Está o seu gado, seus carniceiros, abram!
(…)
No dia 17 de setembro passado, participei de uma missão de solidariedade e investigação de denúncias que esteve em Santa Cruz, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, nas imediações da recém-inaugurada Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA). De capital majoritariamente alemão, ligada ao grupo transnacional Tyssen Krupp, com participação da Vale do Rio Doce, a CSA foi projetada para operar com dois imensos altos-fornos, além de uma termoelétrica e um terminal marítimo próprios, para se transformar na maior siderúrgica da América Latina, produzindo chapas de aço para exportação. Já foram anunciados planos de expansão das instalações, com o objetivo de dobrar a planta e a produção originalmente prevista.
Nos últimos anos, durante a construção da planta industrial, foram feitas diversas denúncias de agressão ao meio ambiente, desrespeito às normas de licenciamento ambiental e desrespeito à legislação trabalhista, como na contratação de trabalhadores chineses ilegalmente trazidos ao Brasil. Foram registradas também perseguições e ameaças aos pescadores que, tendo perdido as condições de pescar e alimentar suas 8.000 famílias na região da Baía de Sepetiba, foram dos primeiros (logo após o acampamento de trabalhadores rurais sem-terra despejado) a sofrer mais diretamente com a empresa e a se organizarem para denunciá-la. Um desses pescadores, inclusive, está hoje distante dos seus, em um programa de proteção a testemunhas, após vários atos concretos de ameaça à sua vida.
Ainda antes da entrada em operação da companhia, foi noticiado que ela seria responsável pela elevação em 76% da emissão de gás carbônico nos céus do Rio de Janeiro.
O fato novo é que desde meados de junho a siderúrgica entrou em fase experimental de funcionamento (fase de operação pré-assistida), com apenas um alto-forno em funcionamento, e logo surgiram na imprensa as notícias de que a população de Santa Cruz fora surpreendida com uma forte carga de poeira prateada, recheada de resíduos metálicos, que dia após dia tornava mais “pesado” o ar no entorno da empresa. Os executivos da TKCSA afirmaram que se tratava de um problema passageiro que já estaria sendo solucionado, mas, a cada dia, os moradores da região percebem que novas nuvens prateadas cobrem os céus a seu redor.
Fomos a Santa Cruz em um grupo de cerca 40 pessoas, oriundas de movimentos sociais, ONGs, Universidades, Institutos de Pesquisa como a Fiocruz, entre outras entidades, além de uma deputada alemã do Parlamento Europeu, única pessoa da missão a quem a empresa aceitou receber. E o que encontramos por lá?
Eu vi uma UPA, construída a partir de “doação” da empresa (entre aspas mesmo, porque a TKCSA tem ampla isenção de tributos, ou seja, ao invés de pagar cerca de R$150 milhões por ano em impostos para que o Estado decida onde aplicar, a título de “contrapartida” de suas isenções, usa uma pequena parcela do que deveria pagar e ainda escolhe como). Nela, os moradores afirmaram que raramente encontram médicos (como, aliás, também ocorre, ainda segundo eles, no posto de saúde local, distante poucas centenas de metros da UPA). Vi na porta da UPA algumas pessoas com os olhos muito vermelhos e irritados. Uma delas nos disse que procurava atendimento havia dias para esse problema que começara semanas antes, depois da entrada em operação da empresa.
Visitei uma escola municipal nas proximidades. Lá constatei que a companhia – a mesma que destruiu vários hectares de manguezais durante as obras de construção e dragagem da baía para a construção da ponte de 4 quilômetros de extensão, que suporta seu porto privado para os navios cargueiros de grande calado que transportarão o aço ali fabricado – agora distribui folhetos em material de primeira, voltados para “educação ambiental”, defendendo, quem diria!, a preservação dos manguezais. Descobri também que a empresa promove cursos de “educação ambiental” para professores das escolas da região, em fins de semana em hotéis fazenda na Região Serrana, quando apresenta suas versões de que traz progresso ao Rio e que controla em limites toleráveis suas emissões de poluentes. Mas também aprendi que os professores questionam o discurso da empresa, interagem com os estudantes de forma a conhecerem melhor o que estão vivendo, produzindo com isso o que é mais difícil de encontrar nessa situação: informações pautadas na experiência real dos homens, mulheres e crianças comuns que sofrem os impactos desse processo, e não nos dados “oficiais” da empresa e dos governos.
Vi, ouvi e aprendi muito mais conversando com os moradores da área. Mães que nos mostraram seus filhos pequenos, tomados de erupções cutâneas, que apareceram a partir de junho, e que se transformam em marcas como de queimaduras após serem coçadas. Donas de casa que nos mostraram o pó prateado – nitidamente resíduo metálico – que varrem todos os dias de suas moradias. Pessoas com problemas nos olhos. E pescadores que, com muita dignidade, relataram suas dificuldades, alguns deles mostrando como passaram a viver a ameaça constante da fome, depois que perderam a possibilidade de trabalhar na região, pela restrição à circulação de suas pequenas embarcações e em função da diminuição do pescado face às obras de construção do porto, que revolveram antigos resíduos de desastres ambientais passados, já há muito depositados no fundo da baía.
Vi de perto, ainda, que não parecem ser apenas rumores as denúncias que vêm sendo publicadas desde 2008, pelo menos, de que muitos acidentes de trabalho ocorreram no canteiro de obras e continuam a ocorrer na planta já em operação, como parecem indicar as ambulâncias que entram e saem dos seus portões. Observei que as estações de controle da emissão de poluentes são operadas pela própria empresa, não pelo órgão estadual responsável. Percebi ali que a ameaça ao pescador que hoje se encontra abrigado pelo programa de proteção a testemunhas não é um caso isolado. Conforme já vem sendo apurado pela Comissão de Direitos Humanos da ALERJ, são muito fortes os indícios de associação da empresa com a milícia que opera na região.
Mas vi também algumas coisas que mantêm acesa a chama da esperança entre os moradores, trabalhadores e trabalhadoras que vivem naquela área. Ouvi mulheres dizendo com firmeza que iriam atrás de “seus direitos”, coletivamente; ouvi pescadores dizendo que agora não estavam mais sozinhos na luta contra a empresa; vi pessoas juntas afirmando que, com a união de todos e todas e a força da sua mobilização, a luta contra os danos sociais, à saúde e ambientais que a empresa vem causando seria vitoriosa. E lembrei de outra passagem da Santa Joana dos Matadouros de Brecht, quando os trabalhadores dos matadouros de Chicago, diante da derrota em seu movimento de resistência, massacrado pela repressão encomendada pelos donos de fábricas, lembram a importância da perseverança na luta, ainda que sem horizonte imediato de conquista:
Se vocês ficarem ombro a ombro
Eles vão massacrar vocês.
O nosso conselho é ficar ombro a ombro!
Se vocês lutarem
Os tanques vão massacrar vocês.
O nosso conselho é lutar!
Essa luta será perdida
E talvez a próxima também
Seja perdida.
Mas vocês aprendem a luta
E ficam sabendo
Que, se não for à força, não vai
Nem vai se a força não for de vocês.
Santa Cruz já foi conhecido como o bairro que abrigava o matadouro municipal do Rio de Janeiro. Aquele matadouro deixou de operar em meados do século passado. Mas os novos “matadouros” industriais continuam a ser instalados ali. A CSA é apenas o maior deles (está prevista a instalação na região de mais terminais de carga, siderúrgicas e estaleiros). Um investimento dos conterrâneos de Brecht em terras brasileiras, pois na Europa este tipo de mega-empreendimento e seus mega-impactos já não são mais permitidos. Mas, em Santa Cruz, como na Chicago imaginária (imaginária?) da peça de Brecht, outros coros de trabalhadores já começam a ser ouvidos. É da força deles que podemos esperar algum limite aos desastres que acompanham uma empresa desse tipo. E o coro será ouvido mais longe e sua força será maior se mais vozes se juntarem às dos trabalhadores e trabalhadoras que vivem em Santa Cruz e na região da Baía de Sepetiba.
Engrossemos esse coro.
*Bertolt Brecht, Santa Joana dos Matadouros, São Paulo, Paz e Terra, 1996.
Marcelo Badaró Mattos é professor titular de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense.
http://www.correiocidadania.com.br/content/view/5136/9/