Resistência e afirmação: o povo Guarani hoje

Há mais de 500 anos, os povos guarani do continente americano demonstram ter uma grande resistência física, cultural e religiosa, além de reafirmarem sempre mais a sua grande nação guarani. É por isso que hoje a sua identidade indígena é mantida de forma dinâmica, diante dos desafios políticos e econômicos atuais.

Esse foi uma das perspectivas de análise sobre “As lutas do povo Guarani, no Mato Grosso do Sul, hoje”, tema da palestra de Egon Heck, coordenador regional do Conselho Indigenista Missionário – Cimi do Mato Grosso do Sul, nesta quinta-feira à noite, no IHU. O encontro faz parte do Ciclo de Palestra Jogue Roayvu: História e Histórias dos Guarani, pré-evento do XII Simpósio Internacional IHU: A Experiência Missioneira: território, cultura e identidade.

Heck, que trabalha há mais de três décadas junto aos povos indígenas do Brasil, da região amazônica até os povos indígenas do Sul do país, vive hoje em Dourados, no Mato Grosso do Sul. Nesse Estado, segundo ele, existem mais de 40 mil guarani-kaiowá em menos de 40 mil hectares. Por isso, “os índios da região estão vivendo tempos e dias nem tão dourados assim”, constatou.

O primeiro problema abordado pelo teólogo e mestre em ciências políticas foi a configuração econômico-política da região, formada por elites que impedem o reconhecimento das comunidades indígenas. Como exemplo disso, Heck relatou que, desde o dia 1º de setembro, grande parte dos altos membros da prefeitura local atual estão na cadeia.

Historicamente, segundo Heck, a fronteira do Mato Grosso do Sul, que pertencia ao Paraguai, foi ocupada economicamente pela erva-mate. Essa era a economia de maior volume do Brasil desde o tempo das reduções dos jesuítas e de maior exportação a partir de 1880. E os índios guaranis foram incorporados nessa economia emergente, com impactos negativos.

“O desenvolvimento foi feito em um processo de corrupção, de manipulação de escrituras, ocupação das terras forçadas”, denunciou.

Porém, o grande impacto sobre os índios veio com o mandato de Getúlio Vargas, especialmente em 1943, quando o presidente quis ocupar as áreas de fronteira com pequenos agricultores. Asim, o governo deslocou inúmeras famílias do Sul, principalmente do Rio Grande do Sul, dividindo a região em colônias. Entretanto, essas colônias não respeitaram os territórios indígenas, e alguns foram invadidos por esse processo de colonização.

Essa ocupação foi sendo gradativamente incentivada, chegando aos governos ditatoriais de Emílio Médici e de Ernesto Geisel, em que, por meio do chamado “milagre brasileiro”, entre 1974 e 1978, desenvolveram uma segunda grande ocupação da região, novamente desrespeitando as áreas de mata nativa e indígenas. Com isso, os índios foram sendo cada vez mais confinados nas poucas terras indígenas que existiam.

Com esse “espírito de ocupação e desbravamento”, afirmou Heck, chegou-se ao agronegócio, hoje liderado pela produção de cana-de-açúcar. Assim, vive-se hoje um processo de reconcentração de terras, pois, além dos índios, os pequenos agricultores também vão perdendo ou abandonando suas terras devido à mecanização da agricultura, processo contra o qual não conseguem se impôr.

Somado a um processo semelhante que foi ocorrendo nos demais territórios guarani, especialmente na Bolívia e no Paraguai, dos 2 milhões de indígenas desse povo que havia na América, hoje eles estão restritos a 300 mil.

Por isso, segundo Heck, o guarani “é um povo que resiste”. Demonstram ter uma “resistência física, cultural e religiosa”, por meio da sua afirmação como grande nação guarani. “Eles chegaram até hoje como um povo que mantém sua identidade indígena de forma dinâmica”, afirmou.

Heck exibiu em seguida cenas de um documentário produzido pelo Cimi neste ano, relatando as lutas e as esperanças do povo guarani. Em meio a cenas das grandes reuniões entre os guaranis, marcadas por rituais celebrativos, na região de Dourados, na fronteira com o Paraguai, os depoimentos de alguns índios denunciam os sofrimentos e as angústias de suas lutas.

“Morrer para mim é pouco, porque o meu povo está sofrendo muito mais do que eu, com a fome, a desnutrição”, dizia um deles. “Nós esperamos e esperamos bastante [pelo governo]. Nós, indígenas, sabemos esperar e sabemos respeitar”, refletia outro. “Hoje estão querendo cortar, arrancar a nossa língua guarani. Não querem que nos defendamos com a nossa língua. Nós vamos resistir. Um cai, o outro levanta. E assim nós vamos continuar”, denunciava uma índia, referindo-se a um juiz que, após o assassinato de um membro da comunidade indígena, não aceitou que os depoimentos no tribunal fossem feito na língua guarani, não aceitando nem a presença de um intérprete. “Eu quero acreditar que nós podemos mudar este país. Mostrar para esse país que nós somos humanos: nós temos alma, temos religião, temos Deus”, conclamava um cacique.

O problema central, no entanto – que leva à existência de 200 índios presos na região – é a demarcação das terras. Segundo Heck, os cenários futuros preocupam, pois os índios “já passaram do limite de tudo o que é paciência”. Nesse sentido, ele comentou a recente entrevista concedida pelo ministro da Justiça, Luiz Paulo Barreto, segundo o qual 95% das terras indígenas previstas na Constituição já foram demarcadas. “Mas como estão demarcadas?”, questionou Heck.

Segundo ele, nessa entrevista, o ministro retoma a mesma prática da ditadura, o mesmo discurso, a mesma ideologia: produção e desenvolvimento, às custas dos povos originários e minoritários. “O modelo vai ser cada vez mais agressivo e concentrador”, afirmou Heck. Além disso, denunciou, “a polícia é extremamente despreparada. Qualquer pretexto serve para bater em índio”, o que leva a um embate cada vez mais crescente nas tentativas de manifestação.

Analisando a questão dos suicídios dentro da comunidade indígena, Heck explicou que, dentro da própria cultura guarani, o suicídio pode ser também uma forma de busca dentro de determinadas limitações. Mas, hoje, “há uma grande aceleração dos processos de suicídio, ligados a vários problemas de violência, como o homicídio”, denunciou. A taxa atual é de 50-60 suicídios por ano. E isso é agravado pelo confinamento, pela falta de terra, de perspectiva, de trabalho, pela total dependência dos órgãos externos. “Tudo isso vai gerando um quadro bastante assustador e agoniante também para eles”, afirmou Heck. E o que mais assusta é que, em geral, quem se suicida são adolescentes, de 12 a 18 anos. “Às vezes com os cadarços dos tênis”, diz.

Além disso, cerca de 95% das famílias guarani ainda vivem com cesta básica, sem se resolver assim a questão fundamental que é “o mínimo de direito à sua terra, ao seu espaço”, denunciou Heck.

Mas novamente a resistência desses povos permite entrever sinais de esperança. “Os guarani são expulsos, mas voltam sempre de novo”, disse Heck. Além disso, hoje já se fala em povos guarani, e não apenas povo, pois são uma grande nação de povos diferentes. “O que os une é a luta pela terra. O que os divide é a cultura”, sintetizou Heck. Essa luta também se expressa em outros números, como os 500 guarani que estão fazendo universidade, sem contar os inúmeros outros que estudam magistério indígena.

Para concentrar os esforços dessas lutas e difundir também suas conquistas, foi lançada a campanha “Povo Guarani, grande povo” (www.campanhaguarani.org.br). No sítio, são encontradas diversas informações sobre a cultura guarani, além de vídeos, dados, mapas atualizados das comunidades, além de notícias sobre os povos guarani nos quatro países que compõem essa grande nação: Argentina, Brasil, Bolívia e Paraguai.

Como indica o texto explicativo da campanha, “a sociedade brasileira jamais foi capaz de ouvir a voz sagrada dos rezadores do povo Guarani, mesmo quando esta voz foi um grito de socorro contra o genocídio que enfrentam. Ao longo dos séculos, a sociedade brasileira vem ignorando a luz do sorriso das mulheres e crianças do Povo Guarani. Talvez por vergonha e culpa, ao longo dos séculos, a sociedade brasileira tenha apagado da memória as belas páginas de resistência escrita pelos bravos guerreiros do povo Guarani”.

Por isso, defende Heck, “quem tem que mudar não são eles, somos nós. Se não houver uma mudança do sistema político e econômico, esses povos estarão condenados em curto prazo”, afirma.

(Por Moisés Sbardelotto)

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=37102

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