“O Brasil não tem política pública para acabar com a pobreza, nem política para acabar com a desigualdade”, constata a economista, em entrevista concedida, pessoalmente, à IHU On-Line, na última segunda-feira, quando esteve no Instituto Humanitas Unisinos (IHU), participando do Ciclo de Palestras Renda Básica de Cidadania. Segundo a pesquisadora, a instituição de programas de distribuição de renda mínima como o Bolsa Família demonstra que o país está mais consciente com as questões sociais e isso ocorre porque o Brasil retomou o crescimento econômico após trinta anos de estagnação. “Quando um país cresce, a renda média aumenta, então, tende-se a reduzir a pobreza”, esclarece.
Na entrevista que segue, ela explica a necessidade de os países capitalistas adotarem políticas de distribuição de renda, fala sobre a proposta da presidente Dilma de erradicar a miséria e ressalta que “é necessário entender a pobreza não apenas como um déficit monetário, mas como um déficit de bem-estar e, neste sentido, praticamente 40% da população brasileira vive em condições muito ruins de moradia. Além disso, nem todos têm o acesso que mereceriam ao sistema de saúde e têm um sistema de educação muito ruim”. A partir desta conjuntura social, argumenta, “o Brasil está longe de realmente poder alcançar a meta de erradicar a miséria e a desigualdade”.
Lena Lavinas é graduada em Economia pelo Institut d’Etudes pour le Développement Economique (França). É mestre e doutora em Estudos sobre a América Latina pelo Institut de Hautes Etudes d’Amérique Latine (França). Realizou o pós-doutorado no Centre de Sociologie Urbaine. É membro do comitê editorial do Feminist Economics (EUA) e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Entre seus livros estão Programas Sociais de Combate à Fome: o legado dos anos de estabilização econômica (Rio de Janeiro: Editora UFRJ – Ipea, 2004) e Emprego Feminino no Brasil: mudanças institucionais e novas inserções no mercado de trabalho (Santiago do Chile: Cepal, 2002). Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são as possibilidades e os limites de implantar um programa de Renda Básica de Cidadania no Brasil?
Lena Lavinas – Há pouquíssimas probabilidades de nosso país implantar um programa de Renda Básica. A Lei 2835, de janeiro de 2004, aprovou a ideia de uma Renda Básica, porém, ela é muito restrita e contraditória. A Renda Básica tem o princípio da incondicionalidade, ou seja, distribuir o mesmo valor para todos, sem fazer distinção entre ricos e pobres. No entanto, a Lei 2835 já nasce com um viés muito grave: o de começar pelos pobres e só ser implementada se houver recursos orçamentários disponíveis. Esses já são pressupostos que comprometem a ideia da incondicionalidade da Renda Básica. O Brasil é um paradoxo porque é o único país do mundo que tem uma lei de Renda Básica. Os demais países nunca adotaram uma lei porque existe um grande debate internacional que discute se o melhor é ter uma Renda Básica ou se é ter mais políticas sociais, programas de transferências de renda, de auxilio saúde e de educação. A Renda Básica só existe no Alasca, um estado estadunidense, justamente em um país onde o nível de provisão social é muito pequeno, onde o nível de desigualdade social é muito alto para um país desenvolvido, e onde as pessoas têm um sistema de proteção social muito residual. O Brasil tem este paradoxo, entre muitos outros, que é o de ter uma lei de Renda Básica, cuja probabilidade de implementação me parece ser muito pequena.
IHU On-Line – Em outra entrevista que nos concedeu, a senhora disse que o Brasil conseguiu instituir um sistema de cobertura ampliada em termos de segurança social a partir dos programas de distribuição de renda. Em que aspectos o país ainda pode avançar nesse sentido? Qual seria o próximo passo para retirar mais cidadãos da miséria?
Lena Lavinas – O Brasil institucionalizou, com a Constituição de 1988, a assistência social como um direito a todos aqueles que são vulneráveis. Isto é uma grande revolução porque na maioria dos países em desenvolvimento, a assistência social é discricionária, ou seja, é implementada segundo a vontade dos governantes, com métodos não muito “católicos”. Portanto, o Brasil tem um diferencial: ao refundar o sistema de proteção social, criando a seguridade social em 1988, o país estabeleceu o seguinte tripé: a saúde, um direito universal com o financiamento de todos; o seguro social, que são as aposentadorias, pensões e outros direitos previdenciários que reúnem um financiamento contributivo específico daqueles que contribuem; e, finalmente, a assistência social voltada aos necessitados com financiamento proveniente das contribuições sociais que incidem sobre o consumo da população em geral, inclusive dos mais pobres. O Brasil cria, portanto, a institucionalidade da assistência social introduzindo imediatamente um primeiro mecanismo de transferência de renda que é o Benefício de Prestação Continuada – BPC. Este passa a ser implementado a partir de 1993 para as pessoas portadoras de deficiência e idosos que vivem em famílias cuja renda familiar per capita é inferior a um quarto do salário mínimo. Desde a sua origem, este novo sistema de proteção social garante um mínimo social, porém poucas pessoas eram cobertas por este mínimo social – hoje, cerca de 3,5 milhões de pessoas recebem este benefício. Portanto, foi necessário expandir essa segurança mínima monetária, e aí surgiu o programa Bolsa Família, que uniu vários pequenos programas fragmentados que existiam. Hoje, sua cobertura alcança 12 milhões e 900 mil famílias, alguma coisa como 44 milhões de pessoas.
Novas iniciativas
Essa política de distribuição de renda mínima é muito importante. Diferente do governo anterior, houve um reconhecimento, por parte do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS, de que muitas pessoas não estavam contempladas no Bolsa Família, e, portanto a meta do governo Dilma é avançar no sentido de garantir essa cobertura a todos que sejam necessitados. Segundo a estimativa do governo, há mais ou menos um milhão de pessoas fora da cobertura, o meu calculo é bem maior, em torno de nove milhões. De qualquer modo, o fato de as pessoas receberem o Bolsa Família não garante que elas saiam da miséria. Sabemos que o programa é pouco efetivo na redução da miséria, ou seja, ele reduz a intensidade da miséria, que algo bem diferente. Com o benefício do Bolsa Família, poucas pessoas vão para além da linha da pobreza, mas elas reduzem a distância, o hiato, que as separa da linha da pobreza. Portanto, temos de entender que este programa tem um mérito muito grande, que não é de reduzir a pobreza, mas a intensidade. Para tirar as pessoas da pobreza precisa de mais coisas.
IHU On-Line – Existe um projeto de imposto sobre riquezas. Qual a sua opinião?
Lena Lavinas – Não há uma mínima chance de que esse projeto passe no Brasil, porque não há nenhum imposto de renda progressivo. Não precisamos chegar a um imposto sobre riquezas, basta mudar o imposto de renda aplicado atualmente, que tem quatro/cinco alíquotas, ou seja, qualquer pessoa que recebe acima de R$ 3,800 paga a mesma alíquota de imposto de renda de alguém que ganha R$ 500 mil por mês. Isso é um absurdo completo. O patrimônio também não é tributado no Brasil. Então, antes de pensarmos em um imposto sobre a fortuna, podemos começar a tributar corretamente o patrimônio, que não deixa de ser uma forma de fortuna. Também seria interessante tornar o imposto de renda progressivo.
IHU On-Line – Os programas de Distribuição de renda permitiram que parte da população tivesse acesso ao consumo. Mas, pensando em desenvolvimento, que avanços é possível constatar a partir de programas de distribuição de renda como Bolsa Família? Percebe-se mais desenvolvimento nas famílias ou apenas ascensão econômica?
Lena Lavinas – Em todos os países do mundo, os governos e a sociedade optam por garantir uma renda mínima aos mais pobres não porque têm pena deles – se fosse por pena e questão de justiça social, dificilmente se garantiria uma renda mínima para 45 milhões de brasileiros -, mas porque pessoas sem rendimento econômico geram uma série de distorções na economia. Por exemplo, se a pessoa não tem dinheiro para pagar a energia elétrica, ela vai fazer um “gato”; se não tem onde morar, vai ocupar uma zona e isso tem impactos na sociedade. A regulação da pobreza começou no século XIV, não tem nada de novo, e é uma forma de reduzir o conjunto de externalidades que são muito ruins em termos de mercado. A economia precisa funcionar e quem não tem o mínimo de recurso, não consegue nem pegar um ônibus para tentar um emprego. É necessário, para a economia funcionar, que as pessoas possam ter uma renda mínima, e é por isso que existem programas de distribuição de renda em todos os países capitalistas.
IHU On-Line – Por um lado, o governo manteve uma postura relutante na negociação do salário mínimo, não aceitando aumento maior de R$545,00 e, por outro, aumentou o valor do Bolsa Família. O que essas duas medidas significam, considerando o compromisso de Dilma em erradicar a miséria no país?
Lena Lavinas – O governo não teve um comportamento relutante. O Brasil criou um princípio de reajuste anual do salário mínimo, ou seja, uma regra geral. Entretanto, essa regra não foi votada, mas ela já era adotada na prática. Essa regra de reajuste prevê que o salário mínimo seja indexado a cada primeiro de janeiro, considerando a inflação acumulada no ano anterior e a taxa de crescimento de dois anos antes. Essa é uma regra muito importante, porque mostra que além de recuperar o poder de compra do salário mínimo – porque se vai incorporar à inflação -, também se garante que, se houver crescimento econômico, haverá um aumento real nos salários.
O governo não tergiversou sobre esta regra e embora ela não tenha sido votada, é vigente. Por isso, no próximo ano, embora se tenha uma inflação de 5,5%, será considerado o aumento de 7% da taxa de crescimento de 2010, o que irá resultar em um aumento significativo do salário mínimo, algo em torno de 14%, que não é pouca coisa. Temos de viver dentro de uma institucionalidade, e, nesse sentido, o salário mínimo é uma institucionalidade, é uma forma de regulação das relações de trabalho. Portanto, o governo fez muito bem em avançar neste sentido. O Bolsa Família foi reajustado acima da inflação, e isso é bom porque melhora a qualidade de vida das pessoa. Porém, ele continua sem ter uma regra definitiva de reajuste, não tem data, não tem prazo, não tem modalidade, e, evidentemente, os reajustes dos benefícios assistenciais continuam a mercê do governo federal.
IHU On-Line – O ajuste fiscal anunciado no inicio do governo pode prejudicar a continuidade das políticas públicas brasileiras?
Lena Lavinas – Sem dúvida. Um país que tem educação de tão má qualidade, que tem um sistema de saúde, que, embora seja universal, não consegue prover todo o serviço na quantidade e qualidade necessária, tem um déficit acumulado muito grande e isso implica gastos superiores. O Brasil gasta pouco em educação, em saúde, em segurança e gasta mal. Além disso, se gasta praticamente nada com política habitacional – o país está há 50 anos sem política habitacional.
Este ajuste fiscal que o governo começou a fazer, embora tenha preservado os valores do Bolsa Família, mostra que o país continua na mesma direção: investe em uma política de combate à pobreza, que na verdade é uma política de redução da intensidade da pobreza, em detrimento da consolidação de um sistema de preservação social, que é muito mais amplo.
IHU On-Line – Pode-se dizer que, historicamente, no Brasil entende-se desigualdade social como sinônimo de pobreza? Ou que as políticas sociais visam muito mais acabar com a pobreza do que de fato com a desigualdade social?
Lena Lavinas – Não penso que confundimos desigualdade social com pobreza. Sempre vai haver pessoas pobres em relação ao outro, porque a pobreza é medida não somente em termos absolutos (pessoas que não tem dinheiro para comer, para pagar o aluguel), mas ela é sempre vista como lugar de alguns indivíduos na sociedade, vis-à-vis outros que conseguem se beneficiar mais com o modo de vida que aquela sociedade construiu para si. Podemos supor que os pobres são aqueles que hoje não têm condições de se beneficiar com o bem-estar acumulado de uma determinada sociedade. A ideia de desigualdade é outra: Cuba, por exemplo, é uma sociedade pouquíssima desigual, relativamente igualitária, mas onde o nível de destituição de grande parcela da população é muito grande. As pessoas são relativamente pobres se comparadas com outras sociedades do mundo capitalista. O que se pode dizer é que a pobreza relativa, como este beneficiar-se de uma qualidade de vida, é uma abordagem que tende a relacionar os que não conseguem fazer com os que conseguem. A ideia de desigualdade não é exatamente esta, é a apropriação que cada parcela da população faz da renda nacional ou do patrimônio nacional. Neste aspecto, em termos de desigualdade, a situação é muito mais grave do que se pode imaginar.
IHU On-Line – Pode-se dizer que, em alguma medida, as políticas públicas brasileiras visam acabar com a pobreza e não com a desigualdade? Por que isso ocorre?
Lena Lavinas – O Brasil não tem política pública para acabar com a pobreza, nem política para acabar com a desigualdade. O país está mais consciente, porque retomou o crescimento econômico, que estava estagnado há trinta anos. Para reduzir a pobreza, é necessário crescer. O caso mais evidente é o da China, que reduziu muito a pobreza, tirou mais de 400 milhões de chineses da miséria. Quando um país cresce, a renda média aumenta, então, tende-se a reduzir a pobreza. Mas é necessário entender a pobreza não apenas como déficit monetário, mas como déficit de bem-estar e, neste sentido, praticamente 40% da população brasileira vive em condições muito ruins de moradia. Além disso, nem todos têm o acesso que mereceriam ao sistema de saúde e têm um sistema de educação muito ruim. Então, pelo lado da acessibilidade aos serviços básicos que podem elevar as dotações dos indivíduos, o Brasil está longe de realmente poder alcançar a meta de erradicar a miséria e a desigualdade.
IHU On-Line – Segundo dados do IBGE, o Brasil tem 16 milhões de pobres. O que esse valor representa para o país considerando o crescimento econômico dos últimos anos, a má distribuição de renda e a “luta” pela redução da desigualdade no país?
Lena Lavinas – O Brasil não tem uma luta histórica pela redução da desigualdade, muito pelo contrário, se tivesse, nós não estaríamos onde estamos hoje, com 16 milhões de pessoas que vivem em níveis de grande miséria e privação. Além disto, o Brasil continua tendo um índice Gini de 0,51, que é altíssimo. O país caiu do terceiro lugar dos mais desiguais para o 12º, então está longe de ser uma diferença boa. Ainda não temos o que comemorar. Estes 16 milhões representam uma estimativa reajustada em função dos dados recentes que o senso demográfico nos trouxe. A média que o governo tinha, com base do PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2009, era de 10 milhões de indigentes e agora o número ampliou para 16 milhões. Então, evidentemente, vai ficar mais caro cuidar deles. Penso que o importante é esperar que o governo seja capaz, de fato, de tornar o Bolsa Família um direito de todos estes indivíduos. Hoje, o Bolsa Família não é considerado um direito, e é por isso que milhões de indigentes miseráveis não são alcançados pelo programa.
IHU On-Line – Como a senhora avalia o discurso da presidente Dilma em relação à erradicação da pobreza e da miséria no país? Que políticas sociais são necessárias para atingir esse objetivo? E que políticas não podem faltar no plano de combate à miséria, que será lançado no fim do semestre?
Lena Lavinas – Ainda não sabemos qual é a proposta da presidente. Existe uma intenção do governo federal expressa nas eleições, e desde que Dilma chegou ao governo, fala-se em erradicar a miséria. Sabemos que não é possível acabar com a miséria, mas se conseguirmos torná-la residual, seria o suficiente. Hoje em dia, praticamente 8,5% da população é considerada indigente. Se esse número diminuir para 2%, será melhor. Sei que a presidente reuniu uma equipe muito boa, coordenada pela Dra. Ana Fonseca (Unicamp), uma pessoa muito séria e correta, que tem princípios universalistas. Tenho certeza de que ela fará o melhor.
IHU On-Line – O que a gente pode pescar dos discursos de Dilma?
Lena Lavinas – Existe uma sensibilidade nova no governo para tentar, aproveitando a retomada do crescimento, minimizar os efeitos da miséria e promover a inclusão social.
IHU On-Line – Que políticas sociais são necessárias, então, para minimizar a miséria?
Lena Lavinas – O Brasil precisa de uma política de transferência de renda e ao mesmo tempo garantir a acessibilidade destes indivíduos a tudo àquilo que é necessário para eles terem uma vida digna, terem iniciativa, aproveitarem outras oportunidades. O país tem de garantir que os serviços básicos como saneamento, moradias de qualidade, saúde, educação cheguem a essa população.
IHU On-Line – Os jornais estão polemizando em torno do discurso da presidente enquanto candidata e o discurso atual em relação à pobreza. Antes, se considerava que o Brasil tinha 19,6 milhões de pobres, considerando a renda de R$ 70,00. Hoje, a medida é um quarto do salário mínimo, R$ 136,00, o que significa que o país tem 16 milhões de pobres. Por estes cálculos e discursos, hoje, ficam de fora da linha da pobreza cerca de 3 milhões de pessoas. Como vê essa polêmica?
Lena Lavinas – A medida continua sendo de R$70. A linha de pobreza não pode estar ligada ao salário mínimo, porque toda vez que o salário mínimo sobe, mais pessoas serão consideradas pobres. A linha de pobreza tem de estar associada à renda média da população. A linha de R$70 da indigência e de até R$200 reais de pobreza não está associada ao salário mínimo, é um valor a partir da renda média.
IHU On-Line – O que significa um Brasil sem miséria? Em que medida o Brasil se encaminha para atingir esse cenário?
Lena Lavinas – Não é possível prever quando isso vai acontecer, até porque o processo de inclusão social implica uma sistemática de garantias. O país tem que ter um horizonte, e precisa, antes de tudo, garantir a toda população o direito de receber o benefício monetário. Hoje isto não é garantido a toda a população. É preciso ter uma linha pobreza que esteja compatível com a realidade, a linha de pobreza e de indigentes que o Brasil tem hoje é muito baixa, deveriam ser maior. Também precisamos ter uma política de elevação do gasto público nestas áreas básicas prioritárias necessárias para o conjunto da população e hoje a política orçamentária vem contestar esta prioridade. Temos ainda uma série de coisas para acertar antes de pensarmos que iremos erradicar a miséria.
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