Por Jarid Arraes, Revista Fórum
Com o risco iminente da PEC 171 – que, se aprovada, reduzirá a maioridade penal de 18 para 16 anos -, se faz urgente expormos a realidade do sistema carcerário brasileiro, suas mazelas e a absurda lógica de punição contra a população pobre e negra. Por um lado, a denúncia contra o genocídio da população negra vem crescendo; no entanto, ainda há uma parcela muito significativa desse grupo amargando a invisibilidade e o silenciamento. As mulheres negras e pobres, trancafiadas nas prisões, enfrentam métodos racistas e machistas que as arrastam para o cárcere.
Para falar de redução da maioridade penal e argumentar contra essa medida absurda, é preciso mencionar a questão de gênero. Afinal, as mulheres negras continuam sendo as mais prejudicadas sem que ninguém se atente para isso. Para a jornalista Nana Queiroz, autora do livro “Presos Que Menstruam”, com lançamento previsto para Julho pela editora Record, a redução da maioridade penal vai condenar as jovens pobres e negras a uma vida de violência sexual e injustiças permanentes. Todos os tipos de agressões e desassistências que as mulheres maiores de 18 anos enfrentam no sistema carcerário também recairão sobre as menores, que enfrentarão a interrupção do desenvolvimento de suas personalidades e serão privadas de oportunidades de mudança.
“A grande maioria das mulheres presas no Brasil, cerca de 80%, é pobre. Muito pobre. E é presa por falta de oportunidade”, afirma Queiroz. Apesar da maioria das mulheres presas não se identificarem como pretas, mas sim como pardas, Queiroz chama atenção para a relação próxima dos problemas de classe com as características negras dessa população carcerária. “Como isso é baseado em autodefinição, isso tem muito a ver com como elas são aceitas na sociedade. Na realidade, quando você caminha numa penitenciária, voce vê que a coloração dessas mulheres é mais escura, sim, apesar da autodefinição contar uma história diferente”.
Acontece que o racismo não considera a autoidentificação como critério para discriminação. Por isso, as mulheres de características negras são, segundo dados do SEADE, mais punidas com a prisão do que as mulheres brancas. Não por acaso, segundo Nana Queiroz, mais de 95% dos crimes cometidos por essas mulheres está relacionado com a necessidade de complementação de renda, ou seja, são crimes ligados a busca por dinheiro e formas de sustentar a si e seus familiares.
Com a análise dessas dados, as relações de gênero se tornam evidentes. “O principal crime das mulheres, por exemplo, é o tráfico de drogas. Em geral, são mulheres que tentam complementar a renda. Ou mulheres que são de famílias monoparentais ou que tem que sustentar os pais e que acabam não conseguindo com o salário que elas ganham, porque elas ganham menos que o homem ou porque o salário mínimo é muito baixo”, exemplifica Queiroz. “O Rio Grande do Sul fez uma pesquisa ótima, que não tem no resto do Brasil, que mostra que cerca de 60% das mulheres que se meteram no crime tinham sido previamente vítimas de violência doméstica, aí, fugindo da situação de violência doméstica com os filhos, elas não conseguiram sustentar a família sozinhas e apelaram para o crime. O primeiro crime mais comum é o tráfico de drogas. O segundo, o terceiro, o quarto crime mais comum, são todos relacionados à complementação de renda: furto, roubo, tudo o que dá renda”.
Embora o trabalho de Queiroz seja voltado para a realidade dos presídios adultos, a pesquisadora observa que nesses presídios é possível encontrar mulheres muito jovens, que chegam com 18 anos de idade. Muitas delas engravidam cedo e se envolvem com a criminalidade quando ainda são menores de idade. Dessa forma, se menores forem condenadas, acabarão enfrentando a realidade do presídio adulto.
“Vale dizer que essa ideia que as pessoas têm de que presídios femininos não podem ser violentos é um estereótipo machista, porque os presídios femininos são violentos. Eu fui em muitos presídios, por exemplo, em que até pouco tempo atrás, até as facções criminosas botarem a regra contra isso, mulheres consideradas muito bonitas tinham o rosto cortado, por inveja, por serem bonitas demais e, por isso, ganharem favores de carcereiros”, relata Queiroz.
No entanto, Queiroz ainda chama atenção para a lógica de violência sexual que está escondida por trás dessa “troca de favores” entre carcereiros e detentas – algo ainda mais grave se passar a envolver menores de idade. “Dentro do sistema carcerário feminino, trabalham homens. Não se obedece a regra de que só mulheres deveriam trabalhar no sistema carcerário feminino. Isso é muito importante de notar, porque existem estupros na cadeia feminina cometidos por policiais. Não tem a denúncia formalizada do estupro, mas porque a mulher faz a troca de favores”. De acordo com essas práticas, a mulher presta favores sexuais para carceireiros e guardas e, em retorno, ela recebe algumas regalias, como mais acesso a comida, cigarros e até lugares melhores para dormir. “As menores de idade estariam sujeitas as mesmas regras“, alerta Queiroz.
Para reduzir o número de mulheres envolvidas com a criminalidade, é mandatório que se volte a atenção para os problemas de gênero, raça e classe. “Mulheres que crescem em comunidades carentes têm muito mais oportunidades de criminalidade. Uma mulher que nasce em boas condições dificilmente vai virar pobre até o fim da vida, mas o oposto também é verdade: uma mulher que nasce sem oportunidades tende a se perpetuar nessa situação. Ela não tem ninguém que sustente ela, por exemplo, enquanto está com um emprego ruim, doente ou se é mãe solteira. É muito fácil de se deduzir, por exemplo, que meninas que são mães solteiras muito cedo e que são muito pobres também caem na criminalidade. E provavelmente elas vão se perpetuar na criminalidade”, afirma Queiroz.
Segundo a pesquisadora, a redução da maioridade penal é o caminho completamente oposto do que deveria ser feito neste momento. “O nosso sistema carcerário está superlotado, ele demanda muito investimento e mesmo assim não é suficiente para respeitar normas básicas de Direitos Humanos. Então, reduzir a maioridade penal é a coisa mais absurda, contrasensual e mais sem base empírica que pode acontecer. Qualquer pessoa que visite o sistema carcerário hoje vai ver que não tem condição de se botar mais gente na cadeia. O que se tem que fazer é botar menos gente na cadeia e isso se faz com educação, não com polícia. É isso que o brasileiro tem que entender”, argumenta.
A educação deve ser também contra o racismo e misoginia, pois as mulheres negras recorrem à criminalidade por problemas muito bem delimitados por preconceito e machismo. Sem que o Estado brasileiro e a sociedade como um todo leve a sério esses pontos, mais mulheres negras continuarão excluídas da sociedade, roubadas de sua cidadania e condenadas, oficialmente, a uma vida de perpétua discriminação.
“No Brasil a questão de raça e classe é bem intersecional, bem enroscada, isso fica muito claro, porque a adolescente em conflito com a lei vai ser uma adolescente de cor mais escura, porque ela tem menos oportunidade, é mais pobre e sofre preconceito. Então, no sistema carcerário feminino em geral, você está criminalizando a população pobre brasileira. Estamos falando de 95% de crimes de complemento de renda. É muito mais pesado para a mulher pobre e negra“, conclui.
Imagem: Reprodução / Youtube
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.