Na noite de 31 de dezembro, reuni um punhado de bons amigos para um rega-bofe na minha humilde choupana a fim de velar, de corpo-presente, o indigesto 2014. Dividíamos um certo alívio em saber que aquela merda de ano estava morrendo. Ah, bando de inocentes ignorantes! Ainda não sabiam que, logo ali, 2015 – o maldito, o eterno, o inominável – estava rindo à espreita.
Perto da meia noite, fui acometido de um subido mal-estar, daquelas dores de cabeça difíceis de explicar. E, com o mal presságio de um cérebro martelando compassadamente com as badaladas do relógio e miolos estourando junto com fogos de artifício, adentrei janeiro.
A crendice materna travestida de sabedoria popular me condicionou a um determinismo profético: seu ano será tão bom quanto for o seu reveillón. Pular sete ondinhas em uma praia paradisíaca, segurando algum drink impronunciável alaranjado com aperol e sem se preocupar se tudo aquilo estoura o limite do cartão são bons indicadores. Quer uma prova disso? O ano dos ricos é sempre melhor do que o dos pobres.
Já passar com enxaqueca é traçar o rascunho do mapa do inferno para a translação solar seguinte.
Veio 2015. Vieram ameaças de morte, agressão física na rua, campanhas de difamação contra este que vos escreve. Veio incompetência na gestão política, econômica, social. Vieram balsas de refugiados sírios. Vieram atentados terroristas. Veio Cunha. Veio Trump. Veio o Corinthians. Vieram seres humanos decididos a brigar com outros a partir de interpretações equivocadas do mundo derivadas da falta de entendimento, da incapacidade da empatia ou de sua fé cega em outros profetas da raiva.
Faltou amor no mundo. Faltou mais ainda interpretação de texto. Faltou alguém diluir ansiolíticos na água encanada ou plantar alegres ervas em praças e jardins.
Uma amiga sintetizou: não dá nem para torcer pelo meteoro porque, do jeito em que estão as coisas, ele viria e, só de sacanagem, não traria o apocalipse, deixando tudo ainda mais meia-boca.
Dia desses, fui acometido novamente por dois episódios pavorosos de enxaqueca. Daqueles que vem só com a ressaca, mas sem a beleza da embriaguez. Com isso, passei praticamente um par de dias no hospital entrando e saindo de máquinas para descobrir a razão de ter um show do Stomp entre as orelhas.
Foi então que veio ela, a revelação.
Em meio a medicamentos, tive uma noite de sonhos intranquilos. Em um deles, um arbusto ardente (se perdeu a novela Os Dez Mandamentos, azar) disse, com voz grave e eco, que tudo era culpa minha.
Não era todo o egoísmo, a desigualdade, a velhacaria, a corrupção, a falta de liberdade e de solidariedade. Era eu e somente eu, pois por causa da minha dor de cabeça mal tratada de 31 de dezembro de 2014, o mundo mergulhara em uma tragédia, como bem previu minha mãe.
Agora tudo fazia sentido.
O arbusto mandou que eu me ajoelhasse diante dele. Uma angústia tomou conta – afinal, não é todo dia que você descobre ser o centro de gravidade das desgraças do planeta e, muito menos, conversa com um arbusto.
Então, dele surgiu Antonio Gramsci, puxando um jumentinho no qual Jesus estava montado.
Gramsci cantarolava Hot’ N Cold, da Katy Perry. Então, o Nazareno, com carinho e compreensão, falou:
– Dipirona sódica, 40 gotas, quando sentir dor. Nos Estados Unidos, é proibido. Mas no Brasil, não.
Acordei suando bicas. Não pelo arbusto, mas pelo El Niño.
Olha, não acredito em nada. Mas, pelo sim, pelo não, vou respeitar a mensagem e levar Novalgina para batizar a sidra.
Posso até não salvar o mundo de ter mais um ano de dores de cabeça incapacitantes.
Mas, pelo menos, estarei de posse de todas as minhas faculdades mentais para ver este 2015 sumir no horizonte.