Em Justificando
Conheci Cintia pelo papel frio do processo criminal e sua situação de prisão mexe com minhas estruturas de cidadã, mulher e juíza. Final de ano, indulto natalino chegando e mil perguntas rondam minha cabeça: Por que se prende tantas miseráveis? Por que elas se envolvem com crime? Por que este aumento brutal de mulheras presas? Por que se faz de conta que não se sabe das violações diárias do sistema prisional? Por que os juizes pouco aplicam as penas alternativas e muito menos as medidas cautelares que não sejam prisão? Por que não se pensa que a prisão rompe as relações familiares e traz consequências danosas para os filhos das presas? Por que o indulto natalino nunca beneficia as mulheres?
Penso que certamente a prisão de Cintia entrou na soma que totaliza 38 mil mulheres presas no Brasil, de um total de 610 mil presos. Entrou no cálculo do crescente encarceramento de mulheres dos últimos 15 anos, que teve aumento de 567% (Infopen-Mulheres, do Ministério da Justiça), com a indicação que a maioria das mulheres não se envolve em crimes violentos.
No processo está escrito que Cintia é branca. Duas em cada três mulheres presas são negras, desta forma, representam 67% enquanto na população em geral a proporção é de 51%, segundo dados do IBGE.
Ela contava com 24 anos, quando foi presa em fevereiro de 2012, portanto jovem, como a maioria das detidas. As mulheres encarceradas de até 29 anos ocupam 50% do ambiente prisional, muito além da mesma faixa etária, fora dos muros.
Tal como 70% das mulheres, foi presa por crime sem violência, por crime de tráfico de entorpecente. Em geral, elas são presas com pouca quantidade de droga, embora não tão pouco como Cintia, condenada por apreensão de 0,89 gr de crack, realizada na casa onde morava com um adolescente de quase dezoito anos. A pena dela, que era primária e de bons antecedentes, é de 5 anos de prisão. Recebeu o regime mais rigoroso, o fechado. Sua pena não foi reduzida, tampouco substituida por medida alternativa.
As mulheres detidas não têm em suas mãos o grande capital do lucrativo tráfico de drogas.
Vejamos: no imóvel onde a apreensão ocorreu, encontraram verdadeira fortuna!: 1 cédula de 50 reais; 8 moedas de 10 centavos; 4 moedas de 5 centavos; 3 moedas de 25 centavos; 1 moeda de 50 centavos; 1 moeda de 1 real; 9 cédulas de 2 reais; 7 cédulas de 5 reais e 1 cédula de 20 reais!!!! Ainda, a polícia registrou em sua vida pregressa, que ela não possuía carro e nem depósito em bancos, a casa dela era de moradia popular e ela dava suporte econômico para a única filha.
Será que a população sabe que aqueles que estão do topo da cadeia do crime de tráfico, muitos conluiados com agentes do Estado, estão usufruindo o alto rendimento do tráfico de entorpecente e apenas os miseráveis é que estão nas cadeias?
E a prisão tem custo altíssimo. O Estado já gastou mais de 100 mil reais com a prisão de Cintia, cálculo à vista do tempo que ela está presa, já que em média cada preso tem o custo mensal de cerca de três salários mínimos ( não quer dizer que diretamente com a pessoa).
Como a maioria das mulheres presas (70/80%), ela tinha uma filha a quem socorria e que dela dependia. Não sei o seu nome e como ela é. Estava com quatro anos de idade e nesta altura já tem cerca de 7 anos e meio.
Não tenho idéia de quantas visitas ela recebeu, mas se ela for como a maioria das encarceradas, pouquíssimas.
O Ministro da Justiça descreveu recentemente a situação de injustiça das prisões brasileiras. O STF, em processo recente apontou verdadeiro “estado de coisas inconstitucional” e reconheceu um quadro insuportável e permanente de violação de direitos fundamentais .
O Ministério da Justiça e o Conselho Nacional de Justiça assinaram em 2015 acordos em razão do excessivo aprisionamento.
É necessário que as palavras partam para a concretude.
É premente dar respostas para ao menos minorar o catastrófico encarceramento feminino. Isto pode ser feito, neste final de ano, através do indulto, que deve considerar a realidade das mulheres encarceradas.
Vários países já adotam medidas diferenciadas em relação ao encarceramento de mulheres, como recomendado pela ONU e OEA, pois esta prisão, segundo estudos realizados, reflete de modo muito mais significativo nas relações sociais e familiares. O presidente dos EUA, Obama, está antecipando a soltura de milhares de presos detidos por drogas.
É preciso, como disse Florizelle O’Connor, rever nossos conceitos de crime, castigo e Justiça, e este três pilares que se conectam estão intimamente ligados ao meu ser de cidadã, mulher e juiza, razão pela qual penso que urge que a presidenta Dilma, usando do seu mandamento constitucional, trate do indulto deste ano, com respeito às especificidades de gênero e que enfim, Cintia seja indultada, assim como outras mulheres que, como a da fotografia, estão esperando que olhem para elas.
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Kenarik Boujikian é magistrada do Tribunal de Justiça de São Paulo, cofundadora da Associação Juizes para a Democracia e membro do Grupo de Estudos e Trabalho Mulheres Encarceradas.