Por Fernanda Canofre, em Global Voices
Antonieta era menina pequena quando andava pela pensão da mãe tentando aprender as letras. Espiando os hóspedes-estudantes, de pouco em pouco se alfabetizou junto à irmã Leonor. Nem imaginava que seria por meio das letras que a professora Antonieta de Barros entraria para a história como a primeira deputada negra do Brasil. O ano era 1934 e não fazia nem 50 anos que a escravidão havia sido abolida.
Pouca gente conhece a história de Antonieta ou mesmo sabe quem foi ela. Em Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina, no Sul do país, ela aparece em nome de rua, escola, túnel e tem até um memorial. Ainda assim, como acontece com tantos nomes perdidos em placas, para muitos é só sinônimo de um endereço qualquer — algo que a cineasta Flávia Person decidiu mudar.
Natural de São Paulo, Flávia viveu sete anos em Florianópolis. Descobriu Antonieta enquanto pesquisava a história dos negros de Santa Catarina, o estado brasileiro com menor índice dessa população: apenas 15% dos catarinenses se declara preto ou pardo. Nas eleições de 2014, foi o único estado que não elegeu nenhum negro. Ainda assim, 82 anos antes, foi ali que uma mulher negra assumiu pela primeira vez um mandato pelo voto popular no Brasil.
Flávia ficou fascinada, como conta ao Global Voices:
Fazer um filme sobre a Antonieta me pareceu urgente. Depois que descobri que ela foi professora, diretora do instituto de educação, cronista dos jornais mais importantes do estado, a primeira mulher a ser eleita deputada em SC e primeira negra no Brasil, e mesmo assim, nem os nativos de Florianópolis conhecem bem a história dela, pensei que era o momento de fazer um filme e propagar a história dela para o máximo de pessoas possível.
Seu documentário curta-metragem estreou em outubro, após de um ano de pesquisa. Para realizar “Antonieta”, Flávia buscou dissertações e teses e vasculhou arquivos públicos da cidade, mas foi salva graças ao acervo pessoal, com imagens inéditas, de um familiar da personagem.
Assina, Maria da Ilha
Antonieta fez da educação sua luta de vida. Ela acreditava na educação como único caminho possível para a emancipação feminina e dos pobres. Ela sempre defendeu a educação para todos, independente de raça, credo ou sexo.
A escrita foi outra forma pela qual Antonieta conquistou seu espaço na sociedade. Sob o pseudônimo Maria da Ilha, Antonieta usava sua coluna para defender os direitos civis das mulheres — isto em uma época em que quase ninguém fazia isso no Brasil, especialmente fora do eixo Rio de Janeiro-São Paulo, como nota a jornalista Ângela Bastos em um perfil da deputada escrito em 2013:
A sensibilidade de Maria da Ilha derramava-se em textos variados sobre educação, civilidade, religiosidade, virtudes morais, éticas e cívicas. Abordava também questões relacionadas às relações de gênero e à vida política e social dos anos 30, no Brasil e no mundo.
As mulheres brasileiras só conquistaram o direito ao voto em 1932. Dois anos depois, a professora Antonieta, que já havia ocupado cargos de direção e discutia de igual para igual com intelectuais e políticos, se tornava uma das primeiras mulheres eleitas a um cargo legislativo — naquele mesmo ano, a médica Carlota Pereira de Queiroz, que era branca, foi eleita deputada federal em São Paulo.
Antonieta sabia que a marginalização das mulheres no meio político “não representava um fato natural”, mas também sabia que ela não era exclusividade da política. Como conta Flávia:
A Antonieta sempre teve um viés político. Logo que se formou, ela fez parte da Liga do Magistério, entidade que defendia os direitos das professoras. Eu descobri que, até meados da década de 30, as professoras do ensino público eram proibidas de contratar casamento, havia uma lei que impedia. A justificativa era que as crianças poderiam fazer indagações indevidas sobre a sexualidade das professoras.
A deputada moderna
O partido, sentindo a mudança de pensamento da década de 30 e querendo imprimir uma ideia moderna, viu na Antonieta, já muito respeitada pela elite por causa de seu trabalho na educação, uma oportunidade. Com certeza, ela deve ter enfrentado preconceito tanto pela cor quanto pelo gênero. Na década de 30, ainda havia discussões sobre a pré-disposição biológica da mulher que a impediria de assumir cargos públicos. Na época, apenas o trabalho de professora e outros relacionados à vida doméstica eram aceitos socialmente.
A escola criada por Antonieta seguiu funcionando por quase dez anos após a sua morte. E as discussões iniciadas por ela dentro da assembleia continuam relevantes. Para Flávia Person, ela é a prova de que a história esquece as mulheres, mesmo quando elas são protagonistas.
O nome da primeira deputada negra segue vivo de outras maneiras. Em Santa Catarina, um grupo de professoras negras se articulou para debater educação, igualdade e políticas públicas em um blog chamado “Outras Antonietas”. Este ano, a Secretaria de Promoção de Políticas de Igualdade Racial da Presidência da República (SEPPIR) lançou o prêmio Antonieta de Barros para jovens comunicadores negros e negras de destaque.
Ao ser perguntada o que Antonieta acharia do Brasil de hoje, onde governadores lutam contra estudantes que pedem mais escolas, mulheres ainda são minoria dentro da política e têm seus direitos ameaçados na Câmara dos Deputados, mas onde há também o florescimento da discussão de gênero, Flávia responde:
Certamente ela também estaria gritando “Fora Cunha”.
Para mais informações sobre o documentário “Antonieta”, acesse a página do filme.
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Destaque: Imagem do documentário Antonieta (2015). Foto: Reproduzida com autorização Magnólia Produções.
Enviado para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.