Violência contra pessoas LGBTI: altos níveis de desumanidade e crueldade

Adital

Em vários países da América Latina e Caribe são registrados avanços significativos no reconhecimento dos direitos das pessoas LGBTI [Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais], mas continuam sendo registrados altos índices de violência, em todos os países da região. Esta é a principal conclusão de um novo informe regional sobre a violência perpetrada contra as pessoas LGBTI ou percebidas como tais; ou pessoas com orientações sexuais, identidades e expressões de gênero não normativas; ou cujos corpos difiram do padrão socialmente aceito dos corpos masculinos e femininos. O documento foi elaborado recentemente pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização de Estados Americanos [OEA].

Essa violência, tal como demonstram os múltiplos testemunhos que recolhe o informe, tem altos níveis de desumanidade e crueldade. Também há uma invisibilidade da violência cotidiana, que afeta essas pessoas, que não se denuncia nem se reporta nos meios.

O informe foca na violência contra as pessoas LGBTI como um fenômeno social, complexo e multifacetado, e não só como um fato isolado ou ato individual. Por exemplo, a violência contra as pessoas intersex está baseada em preconceito para com a diversidade corporal e, especificamente, contra as pessoas cujos corpos diferem do padrão corporal masculino e feminino. A violência que sofrem as pessoas intersex difere da que, no geral sofrem as pessoas LGBT.

Muitos dos atos de violência contra as pessoas LGBT, comumente conhecidos como crimes de ódio, são compreendidos melhor sob o conceito de violência por preconceito, motivada pelas sexualidades e identidades não normativas. As orientações e identidades sexuais diversas desafiam as noções fundamentais sobre o sexo, sexualidade e gênero heteronormativas. Neste sentido, a violência e a violência sexual contra as pessoas LGBT são utilizadas para punir e denegrir as pessoas que se situam fora desses conceptos, em razão de sua orientação sexual, identidade ou expressão de gênero. Além disso, essa violência tem um impacto simbólico, já que envia uma mensagem de terror a toda a comunidade de pessoas lésbicas, gays, bissexuais e trans.

O informe aborda ademais as variadas formas de violência contra cada um desses grupos populacionais. Segundo o Registro de Violência contra Pessoas LGBT, que a CIDH levou adiante por um período de 15 meses, entre 2013 e 2014, os homens gay e as mulheres trans constituíram a maioria das vítimas de assassinatos e de atos de abuso policial. As mulheres lésbicas e bissexuais são afetadas particularmente por violência intrafamiliar e violência sexual.

Por sua parte, as mulheres trans são o grupo mais afetado pela violência policial, sobretudo, no contexto do trabalho sexual. Em sua grande maioria, se encontram inseridas em um ciclo de violência, discriminação e criminalização, que geralmente começa desde muito precoce idade, pela exclusão e violência sofrida em seus lares, centros educativos e comunidades, que se reforça pela falta de reconhecimento legal de sua identidade de gênero, na maioria dos países da região.

Enquanto isso, a violência que enfrentam as pessoas intersex é muito diferente. Meninas e meninos intersex são frequentemente submetidos a operações e intervenções cirúrgicas, que, em sua maioria, não são medicamente necessárias, com o único objetivo de modificar seus genitais, para que se pareçam mais com os de um menino ou uma menina. Essas cirurgias, de natureza irreversível, são quase sempre realizadas sem o seu consentimento, em bebês recém-nascidos ou meninos e meninas de muito pouca idade, e podem causar um enorme dano às pessoas intersex, tais como dor crônica, falta de sensibilidade genital, esterilização, capacidade reduzida ou nula para sentir prazer sexual, e trauma.

O informe analisa também a situação de violência que enfrentam as pessoas, dada a interseção com outros fatores, tais como etnia, raça, sexo, gênero, situação migratória, condição de defensor ou defensora de direitos humanos, e pobreza. Estes grupos podem sofrer um ciclo contínuo de violência e discriminação, causado pela impunidade e a falta de acesso à justiça. Por exemplo, existe um forte vínculo entre pobreza, exclusão e violência. As pessoas LGBT, que vivem na pobreza, são mais vulneráveis ao perfilamento e assédio policial e, em consequência, a taxas mais altas de criminalização e encarceramento. Também as pessoas LGBT jovens têm, em geral, um acesso limitado à moradia, o que aumenta seu risco de serem vítimas de violência.

A grande maioria dos assassinatos e atos de violência contra pessoas LGBTI fica impune. Existem vários obstáculos para o acesso à justiça para pessoas LGBTI e seus familiares, que inclui medo de denunciar, sub-registro do problema, abordagem inadequada por parte de agentes estatais, falências nas investigações, entre outros. A ineficiência por parte dos Estados em aplicarem a devida diligência, para prevenir, investigar, punir e reparar os assassinatos e outros crimes violentos contra as pessoas LGBTI guarda estreita relação com os preconceitos e estereótipos que os agentes do Estado têm sobre as vítimas. Quando os Estados não realizam investigações exaustivas e imparciais a respeito da violência contra as pessoas LGBTI, como ocorre na maioria dos casos, se gera uma impunidade frente a esses delitos, que envia uma forte mensagem social, de que a violência é contornada e tolerada, o que gera ainda mais violência e conduz as vítimas a desconfiarem do sistema de justiça.

Existe um vínculo inerente entre discriminação e violência contra as pessoas LGBTI na América. Neste contexto, também existe um vínculo entre legislações discriminatórias e violência. Exemplo disto são as leis que criminalizam as relações sexuais e/ou outras expressões de intimidade consensuais entre pessoas do mesmo sexo, bem como as expressões de gênero não normativas. Leis de sodomia, indecência séria e indecência grave, proteção da “moral pública” e “dos bons costumes”, entre outras, continuam sendo um problema grave na maioria dos países anglófonos do Caribe.

Ainda que essas leis geralmente não sejam aplicadas, sua existência é utilizada para assediar, perseguir, hostilizar e ameaçar pessoas com orientações sexuais, ou identidades ou expressões de gênero diversas, reais ou percebidas. Esse tipo de legislações contribuem a criar um contexto que estimula a discriminação, a estigmatização e a violência contra pessoas LGBT, reforçando os preconceitos sociais existentes.

O informe aborda também a relação entre o direito à igualdade e o direito à liberdade de expressão. Especificamente, a Convenção Americana proíbe a “apologia ao ódio”, que constitua uma “incitação à violência ou qualquer outra ação ilegal similar contra qualquer pessoa ou grupo de pessoas”. No informe, a CIDH e a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão afirmam que a apologia ao ódio, que incite a violência ilegal contra um grupo, por motivo de sua orientação sexual, identidade ou expressão de gênero, e diversidade corporal, está incluída nas expressões proibidas pela Convenção Americana.

A CIDH insta no informe aos Estados Membros da OEA a investigarem e punirem os crimes e atos violentos contra as pessoas LGBTI, com devida diligência. Considerando o alto número de atos de violência e a desumanidade e crueldade com que são perpetrados, se recomenda que sempre que se abra uma investigação, se inclua a hipótese de que possa ter sido violência por preconceito. Também os Estados devem coletar informação estatística, de maneira sistemática, sobre a violência contra as pessoas LGBTI e sobre o acesso à justiça, que permita identificar os motivos das alarmantes taxas de impunidade. Recomenda-se ainda aos Estados adotarem medidas amplas, a fim de combater a discriminação, os preconceitos e os estereótipos sociais e culturais contra as pessoas LGBTI.

Os Estados devem também adotar medidas preventivas e educativas para responderem e combaterem o discurso de ódio contra as pessoas LGBTI, e derrogarem as leis que criminalizam as relações sexuais e outras expressões de intimidade consensuais entre pessoas do mesmo sexo em privado, e as expressões de gênero não normativas. O informe contém mais de 100 recomendações aos Estados para abordar e resolver esse grave problema.

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