Agente da Campanha da CPT de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo relata caso em que dois irmãos foram resgatados em situação de trabalho escravo em fazenda no estado de Tocantins. Um dos trabalhadores, meses após o acontecido, continua tratamento por conta de intoxicação que adquiriu durante trabalho com agrotóxicos. Confira:
Por Evandro Rodrigues*, na CPT
“Foi numa quinta-feira feira, dia 05 de fevereiro de 2015, na fazenda São Lucas, município de Muricilândia, no Tocantins, onde os fiscais do trabalho e um procurador nos libertou. Nos tirou daquela fazenda onde éramos humilhados pelo patrão e seu filho”, relata trabalhador. “Pobre nasceu para ser pobre e rico para ser rico”. Era o que eles [“patrões”] costumavam dizer quando a gente pedia dinheiro para comprar carne. Essas são lembranças de dois irmãos resgatados em situação de trabalho escravo.
Elias Vieira da Silva, 42 anos, e Nerisvan da Silva, 33 anos, ambos de Pernambuco, foram libertados da escravidão na fazenda São Lucas, localizada no município de Muricilândia, no Tocantins. As condições na fazenda eram péssimas: casinha de madeira exposta a chuva, sem acesso a água potável (apenas uma mangueira, distante 500 metros da casa, trazia a água de uma “cacimba”), dormiam na rede, comida preparada por eles mesmos, não havia banheiros. E quem fazia as compras na rua era o vaqueiro.
O trabalho desenvolvido por eles era o “roço da juquira” (pasto muito sujo) e a aplicação de venenos para inibir o rebroto. Não havia qualquer equipamento de proteção. “Uma vez eu pedi uma capa para me proteger do veneno. Ele disse para eu fazer uma com saco velho, então eu fiz”, relembra Elias. Ele conta também que não podia deixar a fazenda, pois o patrão os ameaçava. “Se sair de novo da fazenda, não vou lhe pagar, pois você vive bebendo cachaça…”, dizia. Mas o trabalhador havia saído num domingo apenas para comprar carne.
Nerisvan, preocupado com a intoxicação que tomava conta do seu irmão por conta do trabalho, que inventou de ir para até a cidade de Araguaína (TO) procurar socorro através do Procurador do Trabalho e da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Visto a urgência da situação, o procurador, Dr. Lincoln Cordeiro, cobrou do Ministério do Trabalho a disponibilização imediata de um inspetor do trabalho – juntos acabaram fazendo o resgate dos trabalhadores. Em seguida, fez contato com a CPT para que acolhesse e acompanhasse os dois trabalhadores enquanto estavam internados em um hospital público de Araguaína, devido a grave intoxicação. Recebemos os trabalhadores no espaço de acolhida e formação Casa Dona Olinda. Compramos os remédios solicitados pelo médico e eles ficaram de repouso na espera de receber suas verbas rescisórias. Nerisvan e Elias haviam trabalhado apenas três meses na fazenda, mas o impacto sobre sua saúde foi grave.
Quando foram receber, 10 dias depois, os trabalhadores se surpreenderam com o inesperado valor arbitrado pelo Procurador do Trabalho – R$ 10 mil, entre verbas rescisórias e indenização por danos morais. Faltava apenas uma conta bancária para eles receberem, que conseguiriam providenciar depois de duas semanas. Mas, com isso, já podiam retornar para a sua terra no Nordeste, distante mais de mil quilômetros.
Na pressa de viajar, o tempo ficou pouco para conversar com os trabalhadores sobre como fazerem um uso responsável de “tanto” dinheiro. Mas já surgiam vários sonhos, como a compra da casa própria, terra, animais e ajuda para a mãe do Elias ou a esposa do Nerisvan.
Chegando ao Nordeste, os trabalhadores passaram a fazer ligações periódicas para a CPT pedindo conselhos. A Pastoral intermediou o contato deles com o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) da cidade onde vivem a fim de orientá-los sobre os programas nos quais eles poderiam ser inseridos. De lá para cá o contato com eles se manteve constante.
Alguns meses depois, Elias comprou um pequeno pedaço de chão, mas está muito cedo ainda para garantir sua sobrevivência. De vez em quando ele ainda sai para trabalhar na diária, porém por perto de sua terra mesmo. Ele continua fazendo tratamento de saúde, ainda sente os reflexos daquela intoxicação, porém está na “labuta” para sair por inteiro do ciclo da escravidão.
Nem todos os trabalhadores e trabalhadoras tiveram a mesma sorte que Elias e Nerisvan. Dias atrás a CPT ouviu de um assentado que mora na vizinhança da mesma fazenda onde foram resgatados que há alguns anos encontrou um trabalhador da fazenda São Lucas em péssimo estado, prostrado na beira da estrada, “se tremendo”, pois ele estava muito intoxicado. Ele era conhecido por “Piauí”. Dias depois foi demitido daquela fazenda, soube-se que, enquanto transitava num ônibus para outra empreita arranjada por um “gato”, desta vez no Pará, acabou morrendo dentro do ônibus.
*Agente da Campanha da CPT de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo “De olho aberto para não virar escravo”