“A nossa história é construída a partir de relações humanas, a partir de pessoas que se olham nos olhos e pensam: nós temos muito em comum por fazer”. Essas palavras foram ditas por uma emocionada Maria Helena Barros, na mesa de abertura do IX Seminário Internacional de Direito e Saúde e XIII Seminário Nacional Direito e Saúde, que teve por tema Direitos Humanos e Povos Indígenas. O clima era ao mesmo tempo de festa e de consternação. Festa, porque o seminário foi o primeiro realizado pelo Departamento de Direitos Humanos, Saúde e Diversidade Cultural (Dihs) como um dos novos departamentos da Escola. Consternação pela da onda de retrocessos por que passa o país, no tocante aos direitos humanos e, mais especificamente, aos direitos dos indígenas. O evento foi realizado na ENSP nos dias 24 e 25 de novembro.
Na mesa de abertura, Hermano Castro, diretor da ENSP, ressaltou a importância dos debates que o seminário se propôs a realizar. “São temas atuais que precisam ser aprofundados, principalmente em uma época de grandes ameaças, que não são mais meramente verbais e, inclusive, estão na pauta dos legisladores”.
O desembargador Caetano Ernesto da Fonseca Costa, diretor da Escola de Magistratura do Rio de Janeiro, lembrou que discussões que versam sobre diferenças culturais são fundamentais para que se construa o respeito ao outro, na sociedade. “Este é um seminário que trata dos Direitos Humanos, que são a sustentação democrática da nossa república. A Escola de Magistratura, portanto, não poderia deixar de participar”.
Renan Aguiar, que na mesa de abertura representou a Ordem dos Advogados do Brasil, salientou a atuação do Dihs na luta pelos Direitos Humanos, no Brasil. “Eu me sinto muito a vontade de falar sobre o Dihs, pois o conheci como grupo de estudos e não como departamento. É preciso olhar para trás para perceber como esse debate em torno dos Direitos Humanos avançou e, em parte, aqui no nosso estado e mesmo no Brasil, esse avanço se deu por conta do trabalho do Dihs, feito por pessoas que se dedicaram à construção de um espaço público de debate. Eu sei da dificuldade de se construir esses espaços nas instituições públicas, embora isso pareça um contrassenso”.
O pesquisador Paulo Amarante, que agora faz parte do Dihs, uma vez que o Laps, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial, se uniu ao Grupo de Direitos Humanos e Saúde Helena Besserman para formar o novo departamento, também esteve na mesa de abertura. Em sua fala, Amarante lembrou a preponderância que a escuta deve ter sobre os tratados e teorias acadêmicas. “Quando abordamos um tema como esse, dos direitos dos povos indígenas, não estamos tratando só de um objeto de pesquisa e interesse intelectual, mas de militância e intervenção política. Artaud (dramaturgo francês da primeira metade do século XX) escreveu uma histórica carta aos diretores dos hospícios dizendo: olha, amanhã de manhã, quando estiverem de frente conosco, lembrem-se que de superior a nós vocês só tem a força. Eu cito esse episódio porque algo semelhante aconteceu com o líder indígena Marcos Terena, quando, num seminário com Edgard Morin e outros pensadores, pediu para que se abandonassem os tratados, os livros, as teorias e se ouvissem os povos indígenas.”
Encerrando a mesa de abertura, Maria Helena Barros de Oliveira, pesquisadora da ENSP e chefe do Dihs, falou da necessidade de se ampliar a luta pelos direitos dos indígenas e debater a questão da terra em nosso país. “É uma luta que tem que passar a ser nossa. Porque ainda não é. Se fosse, não estaríamos com os Guaranis sendo exterminados no Mato Grosso do Sul, com uma denúncia aviltante de exploração sexual de crianças indígenas em Roraima. Esse seminário existe porque ele é uma denúncia. Temos um Congresso Nacional que é, em parte, fascista. Eu destaco a PEC 215, que não só dá ao Congresso o direito de demarcar novas reservas mas rediscutir demarcações antigas. A questão da terra, no Brasil, é uma luta dos trabalhadores rurais, dos quilombolas e dos índios. Não é a toa que quando estávamos prestes a realizar uma reforma agrária, sofremos um golpe militar. A questão da terra no Brasil mata”.
Bem Viver
A primeira palestra do seminário, intitulada Bem Viver: um olhar dos povos indígenas latino-americanos sobre os direitos humanos foi proferida por Pablo Quintero, doutor em Antropologia pela Universidade de Buenos Aires e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Quintero abordou a temática do Bem Viver, tradução possível das expressões indígenas Suma Qamaña – (Aymara/Bolivia) e Sumak Kawsay – (Qiwcha/Equador).
“Essa discussão surge a partir dessa crise da civilização capitalista, que está acontecendo e que implica não só na expansão de modelos de guerra mas também uma crise de racionalidade. Há uma reexpansão da escravidão, da servidão, uma piora das relações de trabalho. O Bem Viver é uma forma de convívio, entre tantas outras, que estão presentes no mundo contemporâneo. Podemos encontrá-las na África, na Ásia e até na Europa, com formas de economia solidária, etc. São alternativas ao sistema moderno capitalista”, disse.
O Bem Viver, segundo o pesquisador, se opõe a narrativa dominante que classifica países e povos a partir de critérios econômicos.
“Um dos problemas epistemológico mais graves das ciências sociais é que não produzem uma narrativa descritiva, mas normativa das culturas. É como se todos tivessem que se desenvolver até chegar à sociedade capitalista, com o Mickey Mouse, Madonna etc.”.
A ideia de Bem Viver implica numa cosmovisão em que homem e natureza não aparecem separados. Atualmente, a expressão aparece nas constituições de Bolívia e Equador. Para Quintero, o tema abre novos olhares para os problemas contemporâneos.
“Eu sei que existem muitas formas de ressemantizar a palavra desenvolvimento. Ele pode ser técnico, sustentável, ecológico, etc. A ideia de Bem Viver nos permite mudar a ideia de desenvolvimento e começar a usar outros termos. Mudar os termos da conversa. Passamos a poder falar da necessidade de mudanças, de solução de nossos problemas, nãos mais a partir da lógica do desenvolvimento”.
A tarde do primeiro dia do seminário foi dedicada a debater as ameaças que os povos indígenas vêm sofrendo no presente. Tonico Benites, doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ e indígena da etnia Kaiowá/MS, fez um breve histórico das lutas dos indígenas por seus direitos, no Brasil.
“Os direitos indígenas, hoje, são resultado do povo brasileiro, não só dos povos indígenas, mas das grandes mobilizações que marcaram, em meados dos anos 1980, um movimento para conquistá-los. Foi uma luta e, hoje, surgem movimentos para defender os direitos conquistados, que se encontram ameaçados”.
Benites lembrou que antes da Constituição Cidadã, de 1988, a maioria das leis foram instituídas contra os povos indígenas.
“Desde 1500, o intuito das leis era extinguir, dizimar os povos indígenas. Em 1570, foi determinada a ‘guerra justa’ contra os nativos. O massacre e a escravidão foram legalizados. Em 1655, outra lei autorizou a prisão dos chamados ‘índios bravos’, que se revoltavam contra a pregação evangélica. Os ‘índios bravos’, presos a cordas, podiam ser entregues aos seus inimigos para serem trucidados. Até 1988, os índios não eram ouvidos judicialmente, não tinham direitos. E muitos profissionais da comunicação continuam entendendo que o indígena precisa de um tutor”.
Quando o assunto é a tão falada sustentabilidade, Tonico ressalta que as práticas de não-agressão à natureza já eram incorporadas há milênios pelos povos tradicionais.
“O índio quer preservar, porque pensa nas gerações futuras. Nós, indígenas, conseguimos preservar nossas terras por milhares de anos, mas isso em pouquíssimo tempo foi destruído. O cidadão brasileiro deve compreender que a luta dos índios não é só para salvar suas vidas e a floresta, mas para toda população brasileira. Tudo que acontece conosco também fará com que os não indígenas sofram, porque o ar, a água, são os mesmos. Na condição de Guarani Kaiowá eu me sinto ameaçado, como povo. Contamos com todas as articulações”.
A segunda palestrante da tarde foi a desembargadora do Estado de São Paulo Kenarik Boujikian. Integrante da Associação Juízes para a Democracia, Kenarik lamentou a falta de investigações quando se trata de assassinato de lideranças indígenas.
“Em 2014, 135 índios foram assassinados. No Mato Grosso do Sul, o percentual é muito mais significativo. Tem uma relação com o fato de ser uma região com baixíssimo número de demarcações. Entre os Guaranis Kaiowás, 16 lideranças morreram”.
Kenarik disse, ainda, que existem cerca de 500 projetos de lei que retiram direitos dos indígenas. Entre eles, o que mais tem sido ventilado é a PEC 215, que visa retirar o processo de demarcação do executivo para o legislativo.
“Isso claramente muda a questão, que tem que ser técnica e passa a ser exclusivamente política. Esses dados demonstram que o grande violador dos direitos indígenas é o estado Brasileiro, através de seus três poderes”, afirmou a desembargadora.
Encerrando o debate, Luiz Henrique Eloy Amado, advogado e indígena da etnia Terena, denunciou o avanço de um movimento de criminalização de lideranças indígenas. O próprio Eloy vem sendo vítima dessa perseguição, uma vez que a OAB do Mato Grosso do Sul vem tentando impedi-lo de advogar.
“Existem, inclusive, CPIs no Congresso e na Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul para criminalizar as lideranças indígenas e também seus aliados. Mais de 50 antropólogos já tiveram que depor no congresso nacional”.
Assassinatos, perseguições, terras roubadas. Ao fim do primeiro dia de palestras do seminário Direitos Humanos e Povos Indígenas, a impressão que ficou nos que estavam no auditório foi a de que há mesmo muito por fazer para os que lutam pelos direitos humanos, como disse Maria Helena Barros, na abertura do evento. Mas se de um lado aumentam os retrocessos, cresce também a resistência. Como lembrou a desembargara Kenaric, em sua fala, os que estão do lado certo da luta pela vida devem acreditar num desfecho mais feliz para sua batalha.
“Apesar de tantos retrocessos, eu vejo um crescimento da resistência indígena e, sinceramente, acredito que a vitória será de quem está com a razão, de quem está com os princípios éticos”.