Pequenos produtores, que segundo o discurso oficial estariam entre os principais beneficiados pela transposição do São Francisco, hoje não têm como retirar água dos canais gigantescos. Outros sofrem com o recuo de lagos sugados pela pior estiagem em 84 anos, como ocorre em Três Marias
Por Mateus Parreiras, no Estado de Minas
Cabrobó (PE), Salgueiro (PE), Casa Nova (BA), Abaeté, Pompeu, São Gonçalo do Abaeté e Três Marias – As cabras que perambulam pela propriedade do agricultor pernambucano Francisco Alves Leite, de 60 anos, já comeram tudo o que restou do milho ressecado e das melancias murchas, que ele tinha plantado. Sem água, todo o cultivo de um hectare morreu no pé e os brotos viraram ração. “Ainda tenho água de chuva no açude por mais dois meses… Quando acabar, vai ser só Deus”, lamenta o agricultor.
Por suprema ironia, graças à obra de transposição do Rio São Francisco, a água do Córrego Mulungu, que era usada para irrigar as propriedades vizinhas, foi parar no Canal Norte do projeto, que corta a propriedade do agricultor no município de Salgueiro (PE). “Não temos motor ou bomba elétrica para tirar a água do canal, que tem mais de 20 metros (de profundidade). Estamos perdendo nossa plantação e as criações pela seca, enquanto o canal está cheio de uma água que ninguém usa”, reclama.
A calha do Rio São Francisco ainda está longe do canal que passa pela terra do agricultor, mas sua situação é emblemática, por enfrentar a seca à beira de uma transposição cuja execução se deu sob a justificativa de levar água ao sertanejo e ao mesmo tempo investir em ações para despoluir e revitalizar o Velho Chico – como foi prometido pelo governo federal em 2005. Pelo menos quatro anos atrasada, a transposição trouxe por enquanto apenas a sede. Nesse meio tempo, a bacia sofre com a seca mais calamitosa dos últimos 84 anos, de acordo com a Agência Nacional de Águas (ANA). Segundo os últimos dados do IBGE, de 2013 e 2012, sobre os municípios pernambucanos de Cabrobó, Floresta e Salgueiro – onde há água acumulada nos canais – sete dos oito cultivos predominantes (banana, coco-da-baía, cebola, tomate, manga, maracujá e melancia) apresentaram queda de produtividade.
Uma crise completa, que abrange das nascentes do Rio da Integração Nacional, que chegaram a secar na Serra da Canastra, em Minas Gerais, até a foz, em Piaçabuçu (SE), onde o avanço da água do mar leito adentro já chega a mais de 20 quilômetros. “Vemos que a crise é grave quando olhamos para a região do Alto São Francisco, em Minas Gerais, de onde vêm 70% das águas da bacia, que sofrem com assoreamento e níveis baixíssimos de mananciais”, alerta o secretário do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), Maciel Oliveira.
Na bacia mineira do Velho Chico, a seca é tão intensa que o Lago de Três Marias, na Região Central de Minas, chegou a 2,8% de seu volume útil em outubro do ano passado. Neste mês, está em 37%. Sem alcançar mais as águas que usavam para irrigar seus cultivos, os agricultores vêm perdendo suas safras desde o início da estiagem prolongada, em 2013. Das oito principais lavouras de municípios do entorno, cinco (arroz, feijão, mandioca, maracujá e melancia) apresentaram retração no comparativo com 2012, ano de chuvas abundantes.
Até o abastecimento público foi prejudicado com as manobras de retenção e liberação de água do reservatório, realizadas a favor da regulação do lago de Sobradinho, entre a Bahia e Pernambuco. “A situação foi ao limite. A população de Pirapora (de 56 mil habitantes, no Norte de Minas) ficou sem água, e esse perigo ainda não foi afastado. Estamos agora investindo em ações para saber quais as dificuldades e necessidades das populações ribeirinhas em caso de nova seca prolongada”, afirma a presidente do Comitê da Bacia do Entorno da Represa de Três Marias, Silvia Friedman.
O drama dos produtores que dependem do lago de Três Marias é também vivido pelos que cultivam em Sobradinho, reservatório que atualmente opera a 22% de seu volume útil. De acordo com o último levantamento da produção agrícola do IBGE, entre 2013 e 2012, das 14 culturas principais plantadas naqueles municípios, nove (banana, goiaba, limão, manga, cebola, mandioca, melancia, melão e tomate) sofreram quebra de safra.
Ao ver as melancias se perdendo na roça no município baiano de Casa Nova, o olhar de desânimo do lavrador Joildo Narcisio dos Santos, de 50, espelha o do pernambucano Francisco, que passa sede à beira do canal da transposição. Os dois viram suas roças dos mesmos frutos murcharem por falta de água para irrigação. Mas, no caso do baiano, o recurso está a mais de cinco quilômetros, a distância que o lago de Sobradinho fica agora de sua plantação. “Não vem mais água do céu e parece que não chega mais água no rio. Debaixo deste sol, a melancia não ‘encheu’. Para não perder tudo, soltamos os bodes na roça para pastar”, afirma Joildo. Situação tão dramática quanto a dos últimos anos, ele diz nunca ter vivido. “Como pode a gente estar morrendo de sede na beira de um mundaréu de água destes?”, indaga.
A situação precária do rio lança mais críticas ao projeto de transposição. Segundo Marcus Vinícius Polignano, coordenador do Projeto Manuelzão – de revitalização do Rio das Velhas, um dos principais afluentes do Rio São Francisco –, um dos motivos para isso é justamente o fato de não haver planos para auxiliar o sertanejo que verá a água passando em canais bem à sua frente, mas continuará convivendo com a sede. “Já não há água para as atividades rotineiras na bacia, e isso não está sendo resolvido. Vai-se sacrificar ainda mais o rio, para eventualmente as barragens no Ceará e Piauí concentrarem uma água que dificilmente chegará aos consumidores, mas estará disponível para o agronegócio”, acusa.
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Destaque: Jolido dos Santos e a melancia que ‘não encheu’: na seca, lavoura virou comida de bode. Foto: EM
Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.