Parecia até coqueluche. Com dor de ouvido e uma tosse seca de macaco-guariba, o índio apurinã Alderi Francisco da Silva, hoje com 38 anos, morador da Aldeia Nova Esperança, na Terra Indígena de Água Preta, procurou o Posto de Saúde, na cidadezinha de Pauini, no rio Purus (AM). Lá, a doutora Cíntia, depois de auscultá-lo com o estetoscópio, junto com remédio deu-lhe um “puxão de orelha”:
– Escuta bem, meu filho, ninguém entra num posto médico assim, só de calção. Aqui não é casa da sogra. Respeito é bom e eu gosto. Na próxima vez, só atendo se vier decente, com camisa.
A resposta veio intercalada por fingido acesso de tosse:
– Doutora, se eu entrar aqui peladão, a senhora é obrigada a me atender, porque andar nu é costume tradicional dos Apurinã. Foi assim que nasci, nuzinho, no meio da floresta.
– Negativo. Eu também nasci nua. Mas nem por isso tiro a roupa para atender meus pacientes.
– Não tira porque não quer. Pode tirar que eu não me importo. Numa boa. Não reclamo, embora a lei que me protege não ampare a senhora. O artigo 231 da Constituição brasileira de 1988 garante que eu posso manter meus “costumes, línguas, crenças e tradições”. A lei me permite ficar nu. Engraçado! A senhora, que não pode reclamar de minha nudez, reclama. E eu, que posso reclamar da sua, nem reclamo.
Se a conversa durasse um pouco mais, a médica acabaria convencida de que precisava se despir, pelo menos, dos seus preconceitos. Alderi conhece a Constituição de trás pra frente Aos seis anos de idade, já lia jornal, ajudado pelo caboco Cosme, casado com sua tia. Depois, fez o curso de formação de professores indígenas, organizado pela Comissão Pró-Indio, do Acre, onde estudou com professores das melhores universidades públicas brasileiras. Foi nos intervalos das aulas, que fiquei ouvindo suas histórias,
ÉGUA, RAPAZ!
Tem gente que nasce músico, pintor ou poeta. Alderi nasceu advogado. Na verdade, não nasceu. Foi parido por força de um ´habeas-corpus´. Daí vem, com certeza, esse dom que tem para se movimentar no mundo das leis.
– Não sei o que acontece comigo. Basta ler uma vez – uma só – e a lei fica dormindo aqui dentro da minha cabeça. Aí, quando eu preciso, ela desperta – ele diz.
Com memória prodigiosa e a capacidade de usar e interpretar leis, Alderi se tornou porta-voz dos professores indígenas, que estavam numa situação irregular: não pertenciam ao quadro permanente de professores do município de Pauini e recebiam uma merreca de salário, 110 reais, sempre atrasado. Em nome de seus colegas, procurou o então secretário municipal de educação, de nome Dalmir:
– Secretário, o município tem de contratar professores com salário decente.
– Não tem vaga pra índio prevista na dotação orçamentária.
– Não leve a mal, secretário, mas o poder público é obrigado a proteger as manifestações das culturas indígenas. Tá lá, no artigo 215 da Constituição. Combine isso com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a LDB, que garante aos índios a oferta de educação escolar bilíngue e intercultural em seus artigos 78 e 79. Se não contrata os professores, o senhor transgride as leis, quem viola as leis é criminoso. E lugar de criminoso é na cadeia.
– Êpa, rapaz, olha como fala! Deixe de ser abusado. Demito vocês todos.
– Secretário, quem nunca entrou, não pode sair. Para demitir, é preciso primeiro nos contratar.
– Então, contrato, só pra poder demitir, por justa causa, por abandono de emprego. Nenhum professor indígena quer trabalhar, só quer receber. Eu mesmo fui várias vezes lá na aldeia supervisionar as escolas e não encontrei ninguém na sala de aula. Vocês não estão cumprindo o calendário escolar. Como é que eu vou criar vaga de professor indígena, se vocês não dão aula?
– Acontece que a gente tem calendário próprio, diferente do seu. Não havia ninguém na escola, porque a aula era de pescar, caçar e conhecer as plantinhas. Tem rio dentro da sala de aula, por acaso? Tem floresta dentro da escola? Tem paca, tatu, cotia? A Constituição, no art. 215, reconhece nossos conhecimentos tradicionais e nossa forma própria de aprender. A Resolução nº 3/99 do Conselho Nacional de Educação diz que a gente pode fazer isso. A lei nos protege.
O secretário, sem argumento, na base do “quem manda aqui sou eu”, ameaçou Alderi, que deu o troco, dizendo que denunciaria o fato ao doutor Kleber Gesteira Matos da Coordenação Geral de Educação Indígena, do MEC, em Brasília.
– O Ministério Público Federal vai mandar cortar o FUNDEF de Pauini – disse.
Pálido, com medo de ter seu fundef decepado, o secretário recuou:
– Égua, rapaz! Não sabe nem brincar! Eu tava só te testando.
A reivindicação foi, finalmente, atendida.
CADÊ A LEI?
A notícia sobre o domínio da palavra e o poder argumentativo de Alderi começou a se espalhar pelas aldeias do rio Purus. Num domingo ensolarado, a polícia prendeu seis índios que haviam tomado um porre e andaram fazendo umas presepadas pelas ruas de Pauini. A família deles só conseguiu encontrar Alderi na terça-feira. Ele foi à delegacia:
– Sargento Peninha, o senhor é autoridade, tem identidade, mas eu também. Me ouça.
– Então fale rápido, que meu tempo é pouco.
– Vim aqui libertar meus parentes da cadeia.
– É rúim, einh! É mais fácil você ficar do que eles saírem. Foram presos porque estavam bêbados.
– Então, sargento, se o motivo foi esse, pode soltar, porque agora eles não estão mais bêbados. Acabou o motivo que deu origem à prisão.
– Rapaz, você tá gozando com a minha cara, é? Você sabe muito bem que a lei proíbe vender bebida pra índio.
Foi aí que Alderi deu o xeque-mate:
– Então, desculpe, mas o sargento prendeu as pessoas erradas. Tinha que prender os comerciantes que venderam e não os índios que compraram. Nenhuma lei proíbe índio de comprar. Se tiver essa lei, me diga qual é o artigo e em que código está.
– Olha, vai embora, antes que eu te prenda.
– Tudo bem! Pode me prender. Mas eu quero que o senhor me dê isso tudo por escrito, num documento assinado embaixo: Sargento Peninha. O Ministério Público Federal vai processar o senhor.
Fez-se um silêncio eterno.
– E aí, sargento, o senhor vai ou não vai me dar o documento?
O sargento Peninha, com cara de égua, respondeu com raiva:
– Vou soltar agora. Mas quem vai assinar o papel é você, seu índio atrevido, um termo de responsabilidade. Você sabe o que é isso? Se eles voltarem a fazer arruaça, quem vai preso é você.
PORTA DE XADREZ
Alderi saiu da cadeia, triunfante, acompanhado pelos seis índios. Foi sua consagração, como advogado de porta de xadrez. Depois disso, seus serviços advocatícios de rábula começaram a ser requisitados também por não-índios. O seringueiro Zezinho, de origem cearense, estava mofando na prisão, acusado de haver estuprado uma índia. Implorou:
– Chamem o Alderi.
Dessa vez, o duelo verbal foi com o tenente Miguel, da PM do Amazonas.
– Tenente, apresento meus respeitos e digo que vim soltar o Zezinho.
– Não quero conversa. Ele é um estuprador e vai apodrecer aqui.
– Ele não estuprou ninguém. É homem sério, trabalhador, sem antecedentes. Deu apenas um empurrão na índia. Tem testemunha.
– Olha, Alderi, não te mete. Ele é branco, você não tem nada a ver com isso.
– Aí é que o senhor se engana, tenente! O senhor é autoridade no âmbito da lei estadual e da lei orgânica municipal. Mas nós somos regidos pelo Estatuto do Índio, a Lei 6001, de 19 de dezembro de 1973, que é federal. O Zezinho trabalha pra gente, como agente florestal, dentro da reserva, sob nossa responsabilidade. Pra prender ele, o senhor invadiu área indígena, o que só poderia ser feito pela Polícia Federal, com ordem de um juiz federal. A prisão é ilegal.
Os argumentos nocautearam o tenente. Sem poder revidar, ele soltou o seringueiro, na hora, depois de perguntar dele, na frente de todo mundo, por precaução:
– Te bati? Te torturei? Não. Então, vai embora.
Mas o Zezinho disse que não ia, porque não podia deixar na delegacia uma espingarda dos Apurinã, calibre 16, que havia sido aprendida com ele. O tenente foi inflexível:
– Não. De jeito nenhum. A arma fica aqui.
Alderi teve de gastar mais saliva:
– Tenente, cadê o boletim de ocorrência?
– Não foi feito.
– Então, não existe registro de apreensão da arma. Se ela legalmente não foi apreendida, ninguém pode me impedir de levar prá aldeia o que pertence à minha comunidade.
– É. Mas eu ainda posso fazer o registro.
– Tenente, o senhor é inteligente, sabe que se registrar, estará confessando por escrito o crime de confiscar um patrimônio indígena. A espingarda é de toda comunidade, serve pra caçar, ajuda nossa sobrevivência. O Ministério Público Federal não vai gostar nadinha disso.
Alderi, com Zezinho ao lado e a espingarda a tiracolo, desfilou como herói entre os 19.299 habitantes de Pauini, o quarto município mais miserável do Brasil, segundo o mapa da fome desenhado no final do ano passado pela Fundação Getúlio Vargas. Suas histórias lembram muito as do Pedro Malasartes, figura do conto popular, inteligente, astucioso, invencível na sua luta contra os poderosos, os avarentos, os ricos, os vaidosos.
Por onde andará Alderi? Nunca mais o vi, não sei se chegou a fazer o curso de direito. Aprendendo o latinorum, ele passaria a perna em muito juiz, daria bolo em desembargador e botaria, data venia, in orificio inimicorum indianorum.
P.S. Publicado originalmente em 29/02/2004 com o título O JURISTA DESCAMISADO DE PAUINI. O texto revisado e atualizado é agora republicado com modificações.