Em Taqui Pra Ti
No momento em que a rádio nascia, no final dos anos 1920, uma emissora alemã convidou o filósofo marxista Walter Benjamin (1892-1940), de origem judaica, para fazer um programa dirigido a crianças.
Durante quatro anos, ele produziu 86 emissões com periodicidade variada, cujas gravações ficaram esquecidas até 1985, quando só então, depois de transcritas, foram publicadas na Alemanha. Agora, saiu em português “A hora das crianças. Narrativas radiofônicas de Walter Benjamin”. Bebi o livro de uma só talagada e quero compartilhá-lo aqui com o leitor do Diário do Amazonas.
O que foi que Walter Benjamin, um intelectual refinado, falou para as crianças? Tudo. Apostou que é possível conversar com elas, a quem trata com muito respeito, sobre todo e qualquer assunto: arte, técnica, política, cultura, língua, história, memória, teatro, literatura, narrativa, arquitetura, urbanismo, o mundo do trabalho e o universo infantil, livros e até mesmo brinquedos, como esclarece na apresentação Rita Ribes, responsável pela edição e coordenadora do Grupo de Pesquisa Infância e Cultura Contemporânea da Faculdade de Educação da UERJ.
A interlocução respeitosa com as crianças permitiu Benjamin dialogar com elas, sem apelar para o excesso de didatismo e sem “infantilizá-las”. No entanto, como não está falando para a academia, tem sempre o cuidado de explicar alguns termos que usa, como no texto “O dialeto berlinense”, onde depois de anunciar em tom coloquial – “Bom, hoje quero conversar com vocês sobre o jeito de falar dos berlinenses” – define dialeto como “a língua que se fala em determinadas cidades ou regiões”.
O autor busca nas ciências da linguagem a reflexão sobre dialetologia e a distinção entre língua falada e língua escrita, mas se adianta à sua época, quando mostra para as crianças a importância da diversidade como marca da língua e quando reconhece o valor das falas populares, atribuindo-lhes características próprias de comunidades discursivas, o que é hoje um dos pontos cruciais da sociolinguística:
– “O berlinês é uma língua que vem do universo do trabalho, não nasceu com os escritores e os eruditos, mas sim no alojamento do quartel, na mesa de carteado, no ônibus, na casa de penhores, no estádio esportivo e na fábrica”.
Os xingamentos
Benjamin, que era um “rato de biblioteca”, deixa a sala de leitura e sai em campo. Flana pelos bairros, estádios, bares, feiras e mercados, escuta e registra a fala poética e bem humorada da rua. Reproduz trechos deliciosos de discursos dos vendedores ambulantes, do vassoureiro, do aprendiz de sapateiro, do camelô que vende prendedor de gravata, dos feirantes. Observa “as pechinchas e o toma-la-dá-cá das mercadorias e do dinheiro” nos mercados e feiras, lugares privilegiados de situação comunicativa pela natureza dos intercâmbios e pela concorrência dos diferentes agentes sociais:
– “A feira é um dos melhores lugares para se apurar os ouvidos e perceber o modo de falar berlinense” – ele diz, mostrando que “provocar as feirantes para ouvir seus xingamentos havia se tornado uma autêntica prática esportiva”.
Num dos programas, ele rememora e documenta para as crianças algumas formas de comércio de sua infância que desapareceram, como as carroças de areia que passavam em 1900 pelas ruas de Berlim com o pregão do vendedor que gritava: “Oooo-lháreia! Reia branca!” e que era usada pelas donas de casa para esfregar e limpar o assoalho e arear as panelas.
Enquanto ainda hoje certos dinossauros da Academia Brasileira de Letras e até mesmo de alguns cursos universitários discriminam o português falado pelas camadas populares como “errado” e tratam a norma padrão como a única “forma correta”, Benjamin não só faz a apologia da diversidade linguística, mas a assume como um patrimônio cultural a ser preservado. Com fina ironia, ele indica às crianças o que devem observar:
– “O comércio de rua de Berlim é a escola superior do dialeto berlinense, a verdadeira Academia de Retórica de Berlim”.
Nascido e criado em Berlim, o autor lembra em outro programa o teatro de marionetes que curtiu em sua infância. Destaca a capacidade crítica dos bonecos e discute o trabalho relevante dos grandes bonequeiros, em diálogo permanente com outras expressões culturais como o teatro, a música, a literatura. Os bonequeiros – ele diz – vivem exclusivamente e apaixonadamente para seus bonecos, todo o resto lhes é indiferente, por isso “chegam até uma idade avançada”.
As diabruras
Adultos conservadores condenam Benjamin por acharem que ele incentiva a transgressão das crianças, como na emissão “A Berlim demoníaca”, na qual o autor confessa que, de noite, quando era menino, lia escondido livros proibidos por seus pais, escritos por Hoffmann, autor de uma produção literária ousada, que articula o fantástico ao cotidiano e onde o próprio capiroto é um dos personagens centrais das narrativas encantadas. “Nem o próprio diabo seria capaz de escrever coisas tão demoníacas” – diz Benjamin – e tão atraentes, eu acrescento. Mas ele contemporiza, aliviado, chamando a atenção para a tolerância que veio com a era do rádio:
– “Hoje em dia isso mudou, há cada vez mais pais que não proíbem seus filhos de ler Hoffmann”.
As brincadeiras são apresentadas como um patrimônio digno de memória nas crônicas “Um menino nas ruas de Berlim” e “Passeios pelos brinquedos de Berlim”. Lá Benjamin registra as diabruras dos moleques que testemunhou em sua infância. Eles penduravam um osso com um pouco de carne na campainha das casas, de forma que cada cachorro que passava pulava e tocava a campainha. Ou amarravam um fio de uma ponta à outra da calçada, derrubando os frequentadores que à noite saíam cambaleantes dos bares.
Não é perigoso divulgar isso em programas destinados às crianças? Benjamin receia receber uma chuva de cartas perguntando: “O senhor enlouqueceu ou o quê?”. Aproveita para antecipar sua resposta:
– “As crianças querem evidentemente conhecer tudo. E se os adultos só mostram a elas o lado bem comportado e correto da vida, elas logo vão querer conhecer o outro lado por si mesmas. Além disso, ninguém nunca ouviu falar de crianças que tenham se tornado malcriadas por causa de Max e Moritz e tenham, por exemplo, colocado pólvora no cachimbo do professor”.
Max e Mortiz formavam uma dupla de capetinhas das histórias em quadrinhos que foram traduzidas no Brasil por Olavo Bilac, como informa uma nota de rodapé feita pelos editores do livro. Aqui eles foram batizados como Juca e Chico. Tais personagens evidenciam a vigência dessa memória e nos fazem refletir até que ponto essas travessuras são universais e povoam a infância de todos nós.
No texto “O Narrador” (1936), Benjamin lamenta o fato de que é cada vez mais raro encontrar pessoas que saibam narrar, que sejam capazes de contar histórias e, com elas, trocar experiências. Decreta assim a morte da narrativa. Mas quem “ouve” as histórias escritas por Benjamin relativiza sua conclusão, porque ele próprio, um puta narrador, é um exemplo que a narrativa está viva e se infiltra nas novas tecnologias da época, como a rádio usada, como queria Roquete Pinto, com finalidade educativa no sentido mais profundo do termo.
P.S. “A hora das crianças. Narrativas radiofônicas de Walter Benjamin” (Rio, Nau Editora, 2015, 289 pgs). Tradução de Aldo Medeiros. A FAPERJ, que acreditou no projeto editorial, está de parabéns.
Adorei essa crônica do Professor Bessa, de quem já fui – com muita honra – orientando. Muito bem escrita! Impecável a ponto de se ouvir a voz dele. Aproveito o ensejo para pedir os créditos para uso desta imagem que apresenta a postagem. Me explico: sou Professor do Instituto Benjamin Constant (instituição federal voltada para o atendimento de Deficientes visuais) e estou gravando minhas leituras para elaboração de um livro falado, que pretendo “upar” numa plataforma de podcasts. Não há nenhum fim lucrativo e eu daria – com toda justiça e certeza – os créditos ao site. Seria possível?