Julgamento simbólico do racismo pelotense: a autoimagem distorcida de uma cidade

Já passou da hora de tomarmos uma atitude contra o racismo que vigora na sociedade pelotense

Por Eliézer Oliveira

Pelotas vende uma imagem turística maravilhosa que oculta o preço de sua história. Fala da riqueza do charque e das charqueadas, dos casarões e de sua rica arquitetura, do título honorífico de “Atenas Riograndense” ou ainda da sua aristocrática titulação de “Princesa do Sul”. Pois bem, a “formosíssima Terra do Sul” canta as suas glórias ocultando a história inglória da escravidão. Entoa no seu hino o seu “esplêndido brilho” ufanando-se de não haver “terra, no mundo grandiosa” como ela, sem admitir que não há, na história da escravidão do país, um lugar tão terrível quanto o “Purgatório dos Negros” – título ocultado de Pelotas.

A “alegria, instrução e valor” foram historicamente negados aos negros, para os quais restou apenas o “aprendi no teu seio chorar”. Olhos negros cegados pelos raios do sol no sal, lombos negros charqueados por chicotadas, unhas desprendidas dos dedos negros pela corrosão do sal, castigos mortais e morais, marcas quentes aplicadas no rosto, pouca roupa no frio sulino para o negro acostumado com o calor da África, fedor do sangue e do esterco do gado abatido, proibição do namoro e do culto afro, estupros e vidas abreviadas… cotidiano permanente “destas negadas”.

Nem o ilustre advogado da terra que trabalhava na Corte do Imperador, o pelotense Ferreira Viana, autor da lei áurea, assinada pela outra Princesa, conseguiu ser mais forte do que a história escravocrata. De lá para cá pouco mudou. Os negros que construíram a riqueza de pelotas, dela nunca desfrutaram, nem eles e nem os seus herdeiros. A riqueza desta terra (que chegou a ter um Banco), a sua vida cultural (o mais antigo teatro do Brasil) e intelectual (o dinheiro do charque que permitiu que os filhos dos barões e baronesas fossem estudar no estrangeiro) foi sustentada pelo braço negro, jamais reconhecido pelos barões e pelo que se autojulgam igualmente aristocráticos.

13 DE MAIO DE 2015: O CASO-SINTOMA

Eis que a exatos 127 anos após a assinatura da Lei Áurea, na Princesa do Sul, terra de Ferreira Viana, ocorre um caso de racismo contra duas alunas cotistas da UFPEL. Caso esse que não é um mero caso, mas, mais do que isso, é sintoma de algo maior: expressão do racismo, homofobia, machismo e elitismo que se propagam em nosso meio. Na manhã do dia 13 de maio, um grupo de formandos do curso de Agronomia se dirigiu, CONFORME A TRADIÇÃO DOS FORMANDOS DESTE CURSO, à Casa do Estudante Universitário – CEU (destinada aos estudantes de baixa renda) e começou a agredi-los, gritando como o senhor de escravos de outrora aos escravos da senzala: “hora de acordar, porque às 6h todo mundo trabalha e os estudantes que moram na CEU não sabem o que é isso”.

Por que desta tradição dos formandos do curso de agronomia? Porventura, estariam eles julgando que a Universidade da “Atenas Riograndense”, tal como a Academia da Atenas Antiga, deveria ser destinada apenas para os membros da elite?

Ao serem convidados, pelos moradores da Casa do Estudante a se retirarem do local responderam: “vagabundos sustentados pelo governo”. Qual é o incomodo destes jovens-burgueses-brancos-delinquentes se incomodarem tanto com os filhos e as filhas dos trabalhadores e trabalhadoras estudarem? Por que julgam tais membros de uma pretensa elite que os estudantes e as estudantes do CEU deveriam trabalhar ao invés de estudar? Também eles, “estudantes” de uma universidade pública, não são sustentados com dinheiro público? Quem mais do que o agronegócio (deus ao qual a maior parte dos agrônomos dobram os seus joelhos) recebe dinheiro público nesse país? Perdão de dívidas, renegociação, crédito, incentivos, perdão de multas por crimes ecológicos e trabalhistas… duramente conquistados pela bem-financiada bancada ruralista.

Ao continuarem plantados no local, os moradores do CEU decidiu regar os futuros agrônomos com baldes de águas frias, que foram respondidos com o crescimento do preconceito contra a população LGBT e às mulheres, além do preconceito de classe já expresso.

O SUPRASSUMO SIMBÓLICO DO CASO

Nesses contratempos ocorreu o GESTO SIMBÓLICO POR EXCELÊNCIA do caso e daquilo que o caso revela para além dele:

“Foi quando um dos formandos empurrou Andy, encostou em seu rosto a camiseta que vestia – estampada com os dizeres ‘Agronomia-FAEM (Faculdade de Agronomia Eliseu Maciel)’ – e lhe perguntou: ‘você sabe ler, neguinha?’. Ela revidou com um tapa, que acertou o rosto do rapaz e feriu sua mão. Enquanto isso, mais um formando agredia Polyana com um empurrão. Após a confusão, o autor do insulto racista deixou o local – ele ainda não foi identificado.” (FONTE: Revista Fórum)

O que isso significa? O que isso revela? O que cada um destes gestos significou na cabeça elitista, racista, machista, homofóbica destes formandos embriagados de preconceitos?

1. “Empurrou Andy” e “agredia Polyana com um empurrão”: É preciso manter a distância de classe, de gênero, de raça, de status de curso acadêmico (as meninas cursam artes visuais e música). Como a ralé ousa se aproximar da elite? Essas mulheres não aprenderam o seu lugar social de submissão aos homens? O que pensam esses neo-escravos ao se rebelarem contra os membros da classe dos senhores? Como uns cursinhos de meia tigela, ligados à arte, arriscam afrontar diretamente o grande curso científico de agronomia? Ninguém lhes informou desta tradição?

2. “encostou em seu rosto (no rosto da acadêmica de artes visuais) a camiseta que vestia”: Fazes artes visuais? Pois bem veja o que importa, o peito de um formando de agronomia! Aprecie o peito branco, viril, que as suas antepassadas foram obrigadas a ver, cheirar e beijar em cada estupro realizado.

3. “a camiseta que vestia – estampada com os dizeres ‘Agronomia-FAEM (Faculdade de Agronomia Eliseu Maciel)’: Veja, pobre coitada das artes visuais, o que é curso acadêmico, o que é mérito, o que é conhecimento de valor, o que é curso superior de verdade, veja com quem você está falando!

4. “com dizeres ‘Agronomia-FAEM (Faculdade de Agronomia Eliseu Maciel)’ – e lhe perguntou: ‘você sabe ler, neguinha?’: “Neguinha” não deve, sequer, saber ler, quanto mais ocupar a mesma universidade que um branco. Tudo culpa das cotas, tudo culpa dos investimentos do dinheiro público nessa gentalha que não tem nem como se manter, nem onde morar. Mas se você sabe ler “neguinha” então leia algo que vale a pena, algo útil, algo importante: Agronomia-FAEM para você.

5. Tomou um tapa e foi embora: com a certeza de que, na terra da impunidade, essa seria a sua única punição. Levando ainda na cara dura o contentamento de ter machucado com a sua cara de pau a mão negra que tentou se defender da agressão branca.

Andy e Polyana não deixaram barato, buscaram a Delegacia da Polícia Civil e da Mulher e conseguiram, juntos com os outros moradores da Casa do Estudante, mobilizar a UFPEL para que ela também investigue o caso e tome as medidas cabíveis contra essa violência.

Todas essas medidas policiais, jurídicas, administrativas são muito bem-vindas, cabíveis e necessárias, porém, em meu entender, insuficientes. Precisamos refletir esse caso e agir. É preciso que as forças vivas da cidade se manifestem: movimentos sociais, movimentos negros, intelectualidade, políticos, sociedade civil organizada, ONGs, Religiões, enfim… todos os que não toleram o machismo, o elitismo, o racismo, a homofobia que degradam a dignidade humana. COMO ISSO PODE SE MANTER NO TRANSCORRER DO TEMPO COMO UMA TRADIÇÃO DE UM CURSO UNIVERSITÁRIO PÚBLICO? Quem nada faz ajuda a manter esse tipo de coisa.

O QUE FAZER???

Muito vem sendo dito sobre o fato: reportagens, notas, debate na rede social, etc. Que bom que fatos como esses ainda assombram alguns e demonstram que nossa sensibilidade humana, não está – ao menos de todo – anestesiada. Porém, é preciso fazer mais! Por isso proponho que a UFPEL, até mesmo como um ato de desagravo, organize e chame um JULGAMENTO SIMBÓLICO DO FATO, juntamente com outras Universidades, OAB, Movimento Negro, Políticos, Religiões de matriz afro (e outras), ONGs, Movimentos Sociais, Institutos de Pesquisas, Imprensa…

Esse JULGAMENTO ÉTICO (julgamento igualmente histórico, psicológico, antropológico…) da questão não substituiria as medidas policiais e jurídicas já aplicadas, mas as complementaria, tratando da questão de forma coletiva, servindo para exorcizar de nosso meio esse tipo de coisa, um tratamento coletivo destes problemas que geram tantas dores e tanta gente por tanto tempo. Isso é um mínimo que se quer de uma universidade (ou de alguns cursos universitários) – sobretudo públicos – que se propõem a cumprir com responsabilidade cidadã e ética a sua missão histórico-social.

Mais com um julgamento como tal precisamos refletir e agir. Para finalizar pontuo mais um elemento simbólico que me incomoda. Como podem cursos universitários tirarem fotos alegres de formatura numa charqueada? O que diríamos de algum alemão que pretendesse fazer as suas fotos de formatura em Auschwitz? Pois bem, uma análise histórica séria, dirá no mínimo que AS CHARQUEADAS SÃO O NOSSO AUSCHWISTZ! E nós achamos isso normal, concordamos, não dizemos nada, permitimos, não problematizamos tamanho desrespeito histórico para com a população afrodescendente.

Destaque: reprodução da postagem do autor em rede social.

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