Estrella que não se apaga

O texto abaixo foi escrito e publicado em 2014, mas está sendo partilhado hoje por amigos, como uma homenagem a Estrella Bohadana, que ontem se foi. O título é o original, dado por Giovana Damasceno. Hoje, entretanto, ele tem seu significado ampliado. O depoimento de Estrella à Comissão da Verdade de Volta Redonda pode ser visto AQUI. (TP)

Por Giovana Damaceno, em seu Blog

Em meio às inúmeras mensagens de congratulações, de rosas de todas as cores, de textos enaltecendo qualidades femininas como sensualidade e delicadeza, posts nas redes sociais valorizando a força da mulher por ter TPM e cólicas e de parabéns por sermos simplesmente especiais, tive a oportunidade de, na véspera do Dia Internacional da Mulher, de estar diante de Estrella D’Alva Bohadana.

Você não sabe quem é Estrella, quase ninguém sabe. Mais: quase ninguém sabe o que ela passou. Pior ainda: pouca gente tem ideia do que ela sofreu por ter como opção de vida a luta incansável por uma sociedade justa, igualitária e livre.

Em novembro de 1970, Estrella foi presa, levada ao antigo 1º BIB, em Barra Mansa/RJ, onde teve início um inferno que duraria meses. Entre o batalhão e o DOI-CODI, no Rio, foram duas idas e vindas e, durante as prisões, foi submetida a todo tipo de tortura: choques elétricos na língua, seios, vagina, ânus; ficou pendurada pelos pés no pau de arara; amarrada nua a uma cama sem colchão, era bolinada por soldados; teve praticamente todas as costelas quebradas. Sofreu um aborto; entrou em coma; voltou à prisão e amargou todo o processo de tortura novamente. Sem trégua.

A acusação: fazia parte de um grupo de oposição à Ditadura. Um grupo que tentava mobilizar cada vez mais jovens para lutar contra o governo de exceção. Dedicou-se a brigar incansavelmente por direitos. Por isso foi considerada inimiga, nociva.

As sequelas físicas: Estrella tem 60% do movimento dos tendões, pelo do tempo em que ficou pendurada no pau de arara; “o restante tenho que recuperar com fisioterapia”, disse. Em consequência dos choques elétricos, adquiriu infecção nas glândulas e ductos mamários, o que a obrigou a passar por diversos procedimentos cirúrgicos e ainda contraiu infecções urinárias de repetição, que duraram anos, por causa dos choques na vagina.

Numa das vezes em que estava amarrada nua à cama, levaram até ela o padre Natanael, também torturado, e que se recusara a olhar pra ela, por pudor. “Pode me olhar, padre, pode me olhar porque estou completamente vestida pelos meus sonhos, pelo desejo que não cessa de mudar o meu país”.

Este é apenas o resumo de uma longa história que ouvimos no depoimento de Estrella Bohadana na Comissão da Verdade de Volta Redonda, dia 7. O nome dela surgiu em outros depoimentos de ex-torturados da cidade e ela foi convidada para falar sobre o que chamou de “um importante Centro de Tortura da região”, referindo-se ao 1º BIB, que depois passou a 22º BIMtz e hoje é o Parque da Cidade. “Nosso dever é não deixar virar essa página”, asseverou. Solicitada a reafirmar a prática de tortura no 1º BIB, não só citou os nomes dos oficiais torturadores, como avaliou que “havia uma espécie de busca de aprendizagem, tipo como torturar melhor”.

Estrella acreditava em uma mudança social e ainda acredita. Seus sonhos não foram esquecidos, muito menos calados pela tortura física. Embora a dor emocional permaneça até hoje – e talvez para sempre –, com embargo da voz, foi enfática ao revelar que valeu a pena. “Continuo acreditando no meu sonho e por ele passaria por tudo aquilo de novo. Por isso é preciso não silenciar, é preciso que estejamos atentos. O medo, a apatia, o arrependimento e desistência causados pela Ditadura são o assassinato da própria história. A vitória daquele regime foi em cima daqueles companheiros que perderam a capacidade de questionar, de manter a atitude de indignação. Eu não consigo me conformar com a desigualdade social deste país. Ainda sonho com um Brasil melhor”.

Passado o impacto provocado pelo relato, pensei nas tantas outras que sofreram igual ou pior ao longo daqueles anos que muitos preferem esquecer. Pensei em mim e nas que me rodeiam. Estrella suportou meses de tortura por lutar por uma sociedade justa, por arregaçar as mangas e tentar fazer alguma coisa. Milhares de outras mulheres passam por barbaridades apenas por serem mulheres. E o que estou fazendo para mudar essa realidade? É a pergunta que me faço, insistentemente, nos últimos dias.

Enviado para Combate Racismo Ambiental por Sonia Maria Rummert.

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