Kátia Abreu um dia já foi condessa, por José Ribamar Bessa Freire

Em Taqui Pra Ti

Temos três provas contundentes de que a senadora Kátia Abreu (PMDB, vixe, vixe), atual ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, já ostentou o título nobiliárquico de condessa. A primeira prova é indireta e se baseia numa tese de doutorado defendida na última terça-feira no Programa de Pós-Graduação em Memória Social da UNI-RIO. A segunda, embora não científica, mas digna de crédito, é uma carta psicografada com mensagem de alguém que morreu em 1882. A terceira, avassaladora, é uma foto analisada por quem entende do riscado.

Tese: memória de libertos

Defendida por Isabela Castro, a tese conta a história de um território dos índios Puri, no Vale do Paraíba do Sul (RJ), usurpado no séc. XVII para dar origem à Fazenda Cantagalo, produtora de café. Sua proprietária no século XIX era uma viúva, sem filhos, chamada Mariana Claudina Pereira de Carvalho, condessa do Rio Novo. No auge da luta abolicionista no Brasil, ela convocou seus 244 escravos e leu o seu testamento. O documento, cujo original está hoje no Museu da Justiça do Rio de Janeiro, determinava que se os escravos trabalhassem direitinho enquanto ela vivesse, seriam após sua morte alforriados e herdariam a terra.

O testamento foi uma esperteza, uma jogada de mestre, cujo objetivo era “produzir fidelidades” e assim neutralizar tentativas de rebelião ou fuga, instituindo “o bom cativeiro”. Tratava-se de uma estratégia bem sucedida para garantir “a paz na senzala”. Quando a condessa bateu as botas, em Londres, em 5 de julho de 1882, seus 244 escravos se tornaram livres. E o que aconteceu com a fazenda e tudo que nela havia: 500.000 pés de café plantados em 53.240 hectares, máquinas, serrarias, terreiros cimentados e outras benfeitorias?

O documento estabelecia um prazo de 50 anos para que os libertos se tornassem efetivamente os proprietários daquela terra cobiçada pelos vampiros locais. Enquanto isso, a fazenda deveria ser transformada em Colônia Agrícola administrada pela Irmandade Nossa Senhora da Piedade mediante o “sistema de parceria”, ou seja, durante esse tempo metade do café produzido pertencia à Irmandade, o que seria fiscalizado pelo juiz de direito e pelo presidente da Câmara Municipal.

Desta forma, para serem os donos definitivos da terra os libertos teriam de trabalhar meio século recebendo apenas a metade do valor do café que era todo comercializado pela Irmandade. Acontece que nem isso os administradores pagavam. Diante do protesto dos ex-escravos, apresentados como “falsos proprietários”, os jornais locais desencadearam campanha, denunciando “a insubordinação dos colonos e sua ousadia”, enfim, uns vândalos. O Provinciano acusou-os de não entregarem todo o café produzido e de serem refinados ladrões.

No entanto, em 1884, o insuspeito Boletim da Sociedade Central de Imigração, em seu número 3, desmente o jornal, descrevendo a vida quase utópica na comunidade:

“Não se queixa a administração da Colônia Nossa Senhora da Piedade de que um único dos libertos haja sonegado sequer, quanto mais roubado, um grão de café que eles colhem. Não se queixam os próprios libertos uns dos outros da subtração de objetos de seu uso, de seu cultivo. Não se queixa nenhum vizinho nem ninguém da povoação, quer habitante fixo, quer viajante, de que os libertos tenham retirado objetos alheios”.

Carta ao Imperador

A tese de Isabel Castro recupera esse e outros documentos da memória subterrânea, incluindo uma carta conservada no Instituto Histórico (IHGB) dirigida a S.M. o Imperador e ao ministro da Justiça, contestando o jornal:

“O Provinciano, afetando isenção de quem nada tem com o negócio, reclama providencias contra os colonos da Fazenda Cantagalo, ex-escravos da Condessa do Rio Novo, que no dizer daquela folha, já por duas vezes tem aparecido nesta cidade em massa turbulenta, ameaçando a tranquilidade publica. Aqui no município a ninguém enganou as manobras daquele jornal que tem como seu principal redator ou inspirador o individuo que, por suas malversações na gerência da colônia, tem dado causa, não a atos de turbulência, como adrede se quer inculcar, mas às reclamações enérgicas, porem pacificas, dos ex-escravos”.

Os administradores da Colônia que faziam parte da elite local se apropriavam em benefício próprio do patrimônio dos ex-escravos:

“Dos livros da Irmandade não constam que se lhes tenha dado a parte dos lucros da fazenda que lhes pertence. O dinheiro do café de há muito nutrem as roletas desta cidade. A voracidade do administrador da colônia é enorme, mais feroz que a jiboia, aquele estomago nunca conhece os trabalhos de digestão. Os pobres pretos não tem recebido o seu dinheiro” e fazem “reclamações pacificas, justamente indignados contra a atrevida espoliação”.

A carta elabora uma crítica às instâncias de poder que agem em interesse próprio e não em defesa da causa pública: “O Provinciano obedece ao pensamento, ao plano dos redatores, os mesmíssimos interessados em abafar a voz das vítimas”. Quanto ao Juiz de Direito, o Imperador é notificado de que “aquele magistrado é cúmplice em tudo isso, pela inércia com que se recusa a cumprir o dever que lhe impõe a lei, de fiscalizar a Irmandade e fazer cumprir as disposições testamentárias”.

Os descendentes dos escravos, liderados por Dona Ambrozina de Lima Bastos, para garantir as terras que legalmente eram suas, entraram em 1940 com uma ação de usucapião, que só foi concluída em 1950, quando muitas parcelas já haviam sido aforadas e vendidas pela Irmandade. Parte da Colônia, já integrada à zona urbana no bairro Colônia, se transformou num palco de especulação imobiliária, com a cumplicidade da Câmara Municipal, que a considerou “terra de ninguém”, justificativa sempre usada para apropriações ilícitas, em que “ninguém” é uma referência a quem está por baixo, cuja cidadania é negada.

O Brasil no bairro

A área é hoje o bairro Vila Isabel do município de Três Rios, denominação irônica dada em homenagem à Princesa Isabel numa disputa pela memória. Mas a cidade não permitiu que a estátua da “Mãe Preta”, em homenagem às amas de leite que amamentaram os sinhozinhos, fosse colocada na frente da igreja de Santa Luzia, nem no bairro Caixa D´Agua. Depois de muita rejeição, foi enfim instalada pelos descendentes dos libertos num cruzamento perigoso da Praça Ambrozina Bastos para não deixar embranquecer a memória.

E a ministra Kátia Abreu, onde é que entra nessa história? Ela está lá, dentro deste bairro, dentro do território narrado, onde cabe o Brasil inteiro. Está tudo lá dentro: os índios espoliados, os negros explorados, os séculos de escravidão, a usurpação de terras, a cumplicidade dos aparelhos ideológicos e repressivos de Estado: as trapaças do juiz, as armações dos vereadores, as mentiras dos jornais, o esquecimento da escola, a doutrinação das igrejas, mas também a resistência, as lutas sociais e as expressões de cultura popular: as festas, a música, o jongo, a ginga, o futebol.

Neste sentido, a tese da historiadora Isabel Castro é uma radiografia do Brasil, com o registro dos mecanismos de disputa da memória. Além dos documentos orais obtidos em entrevistas com onze descendentes dos escravos, a autora vasculhou arquivos e encontrou documentação em atas da Câmara Municipal de Paraíba do Sul e de Três Rios, nos jornais, nos documentos cartoriais, embora papéis referentes à administração fraudulenta da Colônia Agrícola tenham sido queimados em um incêndio de origem criminosa que destruiu a Casa de Caridade em 1955.

É verdade que Kátia Abreu sequer é mencionada na tese, mas ela está lá na pele da condessa e na sua metodologia de ação, assim como é possível ver nos documentos os Gilmar Mendes e Dias Toffoli, Renan Calheiros e Eduardo Cunha, Roberto Marinho e Julio de Mesquita, Merval Pereira e William Waack, enfim toda a caterva da época.

Para quem ainda duvida, trago do acervo da minha imaginação uma carta psicografada com mensagem da própria Condessa do Rio Novo, informando que ela reencarnaria numa menina nascida em Goiânia em 2 de fevereiro de 1962. Os dados batem com a certidão de nascimento de uma certa pecuarista e agronegociante.

Mas a prova mais inapelável é mesmo a foto da condessa encontrada nos arquivos, vestida num modelito comparável àquele usado pela ministra em sua posse, com saia evasê e mangas largas, da mesma cor verde-agricultura ou folha de repolho, num tom entre o limão e o pera. O doutor Brian Stevenson, da Universidade de Virginia, especializado em regressão a vidas passadas e outras ciências afins, depois de examinar de forma percuciente as fotos e os dados, inclusive os grafológicos, concluiu categoricamente:

– Uma é a reencarnação da outra. O DNA é o mesmo. Sem qualquer ofensa à memória da condessa, mas a ministra da Agricultura é a versão reeditada da outra, cujo espírito transmigrou de Três Rios para Goiânia.

P.S. Isabela Torres de Castro Innocencio. Memória de afrodescendentes no Vale do Paraíba: de Colônia Agrícola Nossa Senhora da Piedade a bairro de Vila Isabel. Lugar de Memória, História e esquecimento em Três Rios, 1882-1951. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio. 2015. 364 pgs. Banca Examinadora: Regina Abreu (orientadora, sem qualquer parentesco), Martha Abreu (UFF, sem qualquer parentesco), Andrea Vieira (UNIRIO), May Waddington (UFPi) e José R. Bessa Freire (UNIRIO-UERJ). A banca recomendou a publicação da tese.

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Destaque: Colagem a partir de três fotos da publicação original (tp)

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