Há um ano, pelas mãos de indígenas, pequenos produtores e sem-terra, Dom Tomás era sepultado na Catedral da Cidade de Goiás. Dom Tomás Balduino está vivo e presente naqueles e naquelas que mantêm seus ideais e suas lutas.
“Há um ano, nesse mesmo local, a Igreja de Goiás assumiu o mesmo compromisso, que Dom Tomás assumiu e praticou durante sua vida, em fidelidade ao Evangelho de Jesus Cristo”. Assim Dom Eugênio Rixen, bispo da diocese de Goiás, iniciou ontem, 3 de maio, a celebração em memória a Dom Tomás Balduino, falecido em 2 de maio de 2014. Dom Eugênio retomou a trajetória de Dom Tomás na diocese de Goiás e suas lutas pelo Brasil e pela América Latina. Para Dom Eugênio, “Dom Tomás se manteve ligado ao Evangelho buscando colocar a palavra de Deus em prática, em busca de Justiça. Ele continua presente entre nós, não fisicamente, mas com seu ideal que nos une”.
E exatamente por causa de sua atuação, Dom Tomás despertou a ira daqueles que viam nele uma ameaça à sua ganância e cobiça. “Queriam calar a boca desse profeta. Atingiram e cegaram o padre Chico Cavazzuti tentando atingir Dom Tomás”. Padre Chico Cavazzuti, conhecido como padre Chicão, foi atingido por um tiro na cabeça, em agosto de 1987, em Mossâmedes, interior de Goiás. O tiro o deixou cego. O alvo seria Dom Tomás e não padre Chicão.
Dom Eugênio lembrou, ainda, que teve a oportunidade de participar do ritual indígena numa aldeia Krahô, no Tocantins, quando da morte de Dom Tomás. “Tive o privilégio de acompanhar o enterro simbólico de Dom Tomás pelo povo Krahô, no Tocantins. Como esse povo o amava!”, disse o bispo.
“Permanecei em mim e eu permanecerei em vós” (Jo 15,4)
Durante a homília, representantes, do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) e da CPT (Comissão Pastoral da Terra), que Dom Tomás ajudou a fundar, falaram do significado das lutas defendidas pelo bispo e da importância da sua memória profética para continuar nesse caminho.
Para Antônio Canuto, secretário da coordenação nacional da CPT e membro fundador da entidade, “Dom Tomás era uma presença que nos dava segurança na luta em defesa dos povos da terra. Nós da CPT ficamos um pouco órfãos com a sua partida. Mas Dom Tomás sabe que nós queremos continuar a sua caminhada”.
Egon Heck, do CIMI, destacou que “é importante retomar essa memória perigosa que nos traz à vida”. Isaias, agente da CPT na Cidade de Goiás e assentado no P.A. Mosquito, o primeiro assentamento do município, destacou que “Dom Tomás aproximou a Igreja dos pobres, dos marginalizados. Ele dizia que tínhamos que sair da Igreja e ir para perto do povo”.
“Terra é mais que Terra”
A segunda leitura da celebração foi de uma fala de Dom Tomás, dada em entrevista, em que ele afirmou: “Eu sintetizaria a missão da CPT naquela expressão que diz assim: ‘Terra é mais que terra’. Justamente porque terra é chão e símbolo. É, sem dúvida, o pedaço de terreno necessário à subsistência da família, mas é também a Terra prometida, cuja conquista só acontece na união, na organização, na luta de enfrentamento contra os donos que se apoiam nas instituições públicas. Terra é espelho revelador das estruturas de opressão incrustadas na nossa sociedade…”.
Memória Viva
Muitos trouxeram a memória de Dom Tomás nesse primeiro ano de sua passagem.
Adolfo Esquivel, prêmio Nobel da Paz, escreveu a seguinte mensagem:
“É necessário recordar os profetas, mártires e pastores de nosso tempo. São muitas as vivências e encontros que tive com Dom Tomás Balduino, entre eles me recordo que em 1981, em uma viagem que fiz pelo Brasil com Amanda e frei Alamiro, viajamos com Dom Tomás como piloto em seu pequeno avião a São Félix do Araguaia para visitar outro profeta de nossa Igreja, Dom Pedro Casaldáliga. A Amazônia estava inundada e podíamos ver os animais e os colonos buscando as áreas mais altas, e Amanda teve medo em ver do avião o que acontecia na floresta, pois pensava que se acontecesse um acidente seria fatal. Rimos desses pensamentos e eu disse a ela, ‘Amanda, fique tranquila, o piloto do avião é um bispo que Deus cuida e se cuida dele, cuida da gente também. Além disso, Deus sabe que estamos indo ver Dom Pedro em São Félix’. Assim ela se tranquilizou e chegamos bem para ver o irmão Pedro e compartilhar com ele e com a comunidade nossas orações e a alegria desse reencontro. Dom Tomás tinha sempre o sorriso do espírito do seu compromisso junto aos pobres da Igreja, dos povos de Deus. Ele contava que o pequeno avião lhe servia para visitar lugares distantes, de difícil acesso e com isso podia estar com os colonos, os camponeses e os indígenas. Sempre caminhou junto aos povos com humildade e foi um pastor que acompanhou sempre seu povo. Seu testemunho de vida semeou a esperança a partir da fé”.
O jornalista Leandro Fortes, da revista Carta Capital, também escreveu sobre esse momento:
Um ano sem Dom Tomás
Em dezembro de 2013, atendi uma ligação de um estranho que me chamava de Goiânia. Do outro lado da linha, como se já me conhecesse há tempo, o homem velho anunciou:
– Leandro, aqui é Dom Tomás Balduíno.
Não disse mais nada. Orgulhoso, percebi que ele tinha certeza que eu, jornalista, um homem de esquerda, sabia exatamente quem era – e o que significava – Dom Tomás Balduíno. Quando a ditadura prendia, torturava e assassinava opositores e lideranças populares, Dom Tomás, um gigante moral de baixa estatura física, enfrentou a ala conservadora da igreja católica e os generais para criar, em 1972, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e, em 1975, a Comissão Pastoral da Terra, entidade que presidiu entre 1997 e 1999.
– Leandro, aqui é Dom Tomás Balduíno.
Eu, homem feito, repórter com quase três décadas de atuação, fiquei sem saber o que falar. Tremi.
– Leandro, preciso que você me encontre na CNBB, aí em Brasília. Você precisa me ajudar em um processo na Justiça.
Marcamos na CNBB, no dia seguinte. Ele veio de Goiânia, de carro. Esperei por longas duas horas, perambulando pelos corredores da entidade, sem saber no que pensar. Quando ele chegou, saiu um pouco esbaforido do carro, olhou para mim, em pé, na entrada da sede da CNBB, e abriu os braços, bem humorado.
– Leandro! Foi o trânsito!
Nunca tínhamos nos vistos. Ele me abraçou, satisfeito. Eu, mais ainda. Dom Tomás queria minha ajuda para responder, na Justiça, a uma interpelação da então senadora Kátia Abreu, então do PSD, então presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA).
Com base em uma matéria minha na Carta Capital, sobre a violência que camponeses sofriam em Tocantins pelas graças de Kátia Abreu e outros latifundiários da região, Dom Tomás havia escrito um artigo na Folha de S. Paulo, em janeiro de 2013. Chamava-se “Apreensão no campo” e se iniciava assim:
“Eis o quadro: o pequeno agricultor Juarez Vieira foi despejado de sua terra, em 2002, no município tocantinense de Campos Lindos, por 15 policiais em manutenção de posse acionada por Kátia Abreu. Juarez desfilou, sob a mira dos militares, com sua mulher e seus dez filhos, em direção à periferia de alguma cidade. O caso acima não é isolado. O governador Siqueira Campos decretou de ‘utilidade pública’, em 1996, uma área de 105 mil hectares em Campos Lindos. Logo em 1999, uns fazendeiros foram aí contemplados com áreas de 1,2 mil hectares, por R$ 8 o hectare. A lista dos felizardos fora preparada pela Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Tocantins, presidida por Kátia Abreu (PSD-TO), então deputada federal pelo ex-PFL.”
Eram dados de uma reportagem minha. Ele os usou para concluir o seguinte:
“Lideranças camponesas e indígenas estão apreensivas com o poder da senadora por sua atuação na demarcação de terras no Brasil.”
Conversamos por pouco mais de meia hora. Expliquei para ele o contexto da matéria e prometi enviar-lhes os documentos que possuía para ajudá-lo a responder à diligente senadora – o que fiz, por e-mail, no dia seguinte.
Dom Tomás, então, me agradeceu e abraçou. Quando dei as costas para ir embora, ele perguntou, assim, como que por acaso.
– Leandro, você é católico?
Eu dei um sorriso triste, antevendo uma decepção.
– Não, Dom Tomás, sou ateu.
Ele riu. Um riso curto, quase feliz. Agradeceu a ajuda de novo e mandou eu ir em paz.
Eu fui.
Dom Tomás Balduino, que enfrentou generais de farda e coronéis de terras de peito aberto, tinha como arma apenas suas convicções.
Ele morreu há exatamente um ano, aos 92 anos. Não sei que fim levou o processo de Kátia Abreu contra ele. Mas fico feliz que ele tenha morrido antes de vê-la empossada como ministra de um governo do PT.
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Imagem: Dom Tomas Balduino (Crédito: Marina Moreira)