Década dos afrodescendentes: pelos consensos e não às concessões

Por Diosmar Filho

Pensar o título para o texto foi mais fácil do que relacionar tudo que me faz escrever sobre uma posição de consenso e não de concessões, pensando nas ações dos movimentos sociais e suas representações na relação com o Estado.

Essa ideia se fortalece na leitura de duas obras de pensadores contemporâneos que escreveram uma nova epistemologia do conhecimento no século passado, contudo, seus escritos já estavam no século atual. A primeira é Os Condenados da Terra[2] de Frantz Fanon publicado em 1961[3], que abordou sobre Grandeza e Franqueza da Espontaneidade, alertando aos ex-colonizados que lutam por liberdade plena, que poupem forças não as colocando de uma só vez na balança e reconheça sempre que as reservas do colonialismo são mais importantes e mais ricas. A guerra é dura e o adversário sempre se defenderá, o embate não ocorrerá nem hoje nem amanhã:

Na verdade, ele começou desde o primeiro dia e não terá fim por não haverá mais adversário, mais simplesmente porque este, por muitas razões, verá que é do seu interesse terminar essa luta e reconhecer a soberania do povo colonizado (FANON,2005, p.164)

A outra é O Espaço do Cidadão[4] publicada em 1987[5], por Milton Santos – reconhecido percursor da epistemologia geográfica ao Sul, nessa decorre pela construção da Nação com cidadãs capazes de serem, atuarem e dialogarem com o Estado. Escrevendo a cerca Da Personalidade Ativa ao Cidadão analisa a liberdade explicando que, essa conduz a ação e pode sim ser refreada pelo poder da força, caracterizado na personalidade forte reprimida e ausência do cidadão:

A cidadania é mais que uma conquista individual. Uma coisa é a conquista de uma personalidade forte, capaz de romper preconceitos. Outra coisa é adquirir os instrumentos de realização eficaz dessa liberdade. Sozinhos, ficamos livres, mas não podemos exercitar a liberdade…. É assim que nosso campo de luta se alarga e que um maior número de pessoas se avizinham da consciência possível, rompendo as amarras da alienação. (SANTOS,2012, p. 103)  

Sobre esses campos de reflexão podemos colocar o desafio em ter novos espaços de diálogo para o consenso entre sociedade e Estado, no Brasil, a partir dos debates que se dão no primeiro ciclo do segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff, passamos a viver um ciclo bom na democracia, ao sentir a claridade das diferenças e interesses vivos na sociedade e em todas as esferas de poder do Estado.

E daí a sociedade civil organizada passa a ter o desafio de não recear na defesa dos interesses, precisando assumir o papel de autonomia porque almeja no horizonte o poder do Estado-Nação, para que esse responda aos diferentes na totalidade da população.

Justamente, nesse ponto os próximos dez anos são de extrema importância para todos no Brasil, não serão anos de luta dos grupos organizados como Movimentos Negro, são anos com questão para a sociedade brasileira e o Estado, sua representação institucional compromissada em efetivar a Década Internacional dos Afrodescendentes da Organização das Nações Unidas (ONU)[6]. Porque no Brasil, 52% de mulheres e homens assumem a identidade negra[7] e a legalidade e efetividade da ação pública é compromisso de Nação e não uma questão de movimento.

Os pensamentos de Fanon e Santos, são fundamentais para reconhecer o poder do colonizador que ressurge no espaço político, sendo preciso ir além de indivíduos personalizados de conhecimento em movimento com pautas de concessões, haverá necessidade de movimentos pela cidadania com o compromisso de efetivar direitos coletivos no consenso.

Aos movimentos organizados em diálogos diretos com governo (federal, estadual e municipal), se coloca como necessárias as pautas que rompem com as concessões (aqui não se fala em fechar o diálogo), não aceitando que as representações sejam feitas pelo personalismo forte.

Porque, efetivar uma década como agenda de país, é obrigar o planejamento político do Estado pensar a médio e longo prazo, tirando-o da meritocracia e burocracia, passando a ser gestado pela ideia, uma forma de ver o poder de uma Nação que busca a equidade entre seu povo e as formas e estruturas tenham mudanças. Será nesse ponto que o colonizador se apresenta, se posiciona e reorienta nas práticas racistas, intolerantes, sexistas, homofóbicas e todas as outras formas de violência não dando condições ao desenvolvimento da agenda de Nação.

Reconhecer o cenário das relações de poder (político e econômico) é importante para a sociedade compromissada e não só aos movimentos de mulheres e homens, pois nos últimos doze anos o Brasil avançou em indicadores socioeconômicos alcançando a população negra brasileira, essa passou a ter maior acesso à educação, a saúde, a moradia, ao trabalho de melhor qualificação, assim como, a assistência para superação da extrema pobreza.

Com isso, temos um país com potencial econômico melhor avaliado em acesso a bens e serviços, então, se considera que a maioria da população teve melhoras e hoje ocupa poder de consumo. Porém, esse poder pode se tornar um grande atraso para a totalidade da população negra, se não conquistar além do consumo à cidadania que a levará a integração e sendo de fato cidadãs brasileiras, como bem defendia Milton Santos.

A Década Internacional dos Afrodescendentes só terá valia se for alcançada a totalidade da população em seu conhecimento, para isso as agendas estabelecidas entre sociedade civil organizada e governos não podem ser de concessões, isso porque as construções provam que não são feitas para a maioria da população de mulheres, homens, jovens e crianças negras. É preciso agendas de consensos, essas se afirmam pela não negociação dos direitos constitucionais, valorizando-os como base da democracia ao projeto de Nação.

É preciso outro tipo de diálogo para os movimentos, nesse não deve ter lugar o personalismo que tem ocupado o espaço político e se constituído como representativo no Estado (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), o que legitima o racismo e as violências institucionalizadas, que tolhem e limitam qualquer avanço estrutural no Estado de direito. Ter posição sobre esse ponto é o que as/os que militam por direitos coletivos precisarão na defesa e recusa das concessões negociadas entre personificações sociais e governos.

Por fim, a posição firmada reconhece que o racismo como ideologia se reestrutura a cada passo para a cidadania, esse também avançará sobre a década de desenvolvimento da população negra, atuando nas agendas personificadas por viajantes e governos comprometidos com suas viagens, e em 2025, teremos bons relatórios em plenárias e eventos da ONU.

Os resultados positivos de governos e viajantes serão responsáveis pelo esmagamento do direito constitucional de equidade para a população negra, a sociedade e o Estado continuarão negando à terra aos quilombolas e os territórios das pescadoras/os artesanais, o desenvolvimento educacional, assim como, continuará violentando as mulheres negras que nas segundas-feiras enterram seus meninos negados da proteção do Estado para que o mesmo Estado o execute desarmado.

Notas:

[1] Geógrafo, pesquisador membro do Grupo de Pesquisa Historicidade do Estado e Direito (GPHED) – Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected]

[2] FANON, Frantz. Os condenados da terra. In: Frantz Fanon. Tradução Enilce Albergaria Rocha, Lucy Magalhães – Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005. 374p.

[3] Publicação da Libraire François Maspero – Paris.

[4] SANTOS, Milton. O espaço do Cidadão. ed., 1. reimpr. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012a. 169.p

[5] Publicação da Livraria Nobel S.A.

[6] Documento disponível em: http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/68/237

[7] Critérios censitários do IBGE – agrupadas as categorias de pardo e preto.

Comments (1)

  1. Esta postagem nos oferecem inúmeras razões pelas quais devemos lutar para nos organizarmos social e depois politicamente. Só assim poderemos cobrar das Instituições públicas (municípios, estados e governo federal) direitos sociais que justifiquem os deveres que somos obrigados a cumprir.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.