As delegações dos povos indígenas, que acamparam três longos dias debaixo de forte chuva e sol quente na Esplanada dos Ministérios de Brasília, arrumaram suas mochilas, desmontaram lonas e barracas. Desde a saída de suas aldeias discretamente monitorados pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin), retomaram a estrada e estão voltando para suas terras que valentemente defenderam. Há alguns anos, o Acampamento Terra Livre (ATL) faz parte da Mobilização Nacional Indígena com ações concomitantes espalhadas por todo o Brasil.
O comentário é de Paulo Suess, assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário – Cimi, publicado no seu blog. Agradecemos o envio do artigo para ser publicado nesta página. As imagens que ilustram o texto são do autor do artigo.
Antes de vir para Brasília, as lideranças convocadas pelas suas organizações regionais e pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), percorreram as regiões e conversaram com seus povos sobre o significado do ATL. Já preparando futuros militantes da causa indígena, trouxeram muitos jovens que pela primeira vez estiveram em Brasília. Ao lado desse foco pedagógico, o que significou, politicamente, a mobilização de 1,5 mil lideranças indígenas no ATL contra a mobilização de três bancadas do Congresso e de três Poderes constitucionais durante 365 dias ao longo do ano?
O leitor, politicamente instruído sobre os Três Poderes, pode perguntar: “Mas, quem são essas Três Bancadas”? São as bancadas BBB, da Bíblia, do Boi e da Bala, as bancadas do fundamentalismo, do agronegócio e da liberalização da compra e do porte de armas (PL 3722/2012). Para fazer passar seus respectivos projetos pelas votações, essas bancadas fazem alianças transversais com outros setores, como aconteceu na votação da Redução da Maioridade Penal (PEC 171/93) e na preparação do Projeto de Lei (PL 4330) que pretende regulamentar a Terceirização do Trabalho.
Face às três bancadas e aos Três Poderes, os povos indígenas vivem politicamente encurralados em uma situação de guerra civil silenciada pela mídia e sustentada pela classe dominante, pela força bruta de assassinatos no campo e pela repressão “legal” que está instruindo processos que criminalizam as lideranças indígenas e as colocam nas cadeias. A coordenadora da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (CCR), Deborah Duprat, fez uma leitura correta do panorama político que vivemos hoje: “Avalio que estamos vivendo um dos piores momentos pós-Constituição de 1988 no que diz respeito a direitos territoriais indígenas. Isso porque, pela primeira vez, os três Poderes, por ação ou omissão, passam a percepção de que há excesso nas demarcações de terras indígenas e de que é preciso adotar providências no sentido de assegurar direitos de propriedade de terceiros” (Porantim, Jan/Fev 2015, p. 4).
Os discursos das lideranças indígenas, suas faixas de protesto e documentos protocolados durante o Acampamento Terra Livre (ATL 2015) mostravam os conflitos estruturalmente conectados à hostilidade dos Três Poderes, escondidos atrás de siglas misteriosas como PEC 215 (referente ao Poder Legislativo), Portaria 303 (referente ao Poder Executivo), anulação de “Portaria Declaratória” e “Marco Temporal” (ambos de iniciativa do Poder Judiciário).
A PEC 215 é a Proposta de Emenda Constitucional, que transfere do Poder Executivo para o Legislativo, portanto, do Governo Federal para o Congresso, a atribuição de oficializar Terras Indígenas em detrimento dos artigos 231 e 232 da Constituição que regulamenta as demarcações de terras indígenas. Por que esta fúria dos índios contra a PEC 215? No Congresso hospedam-se os interesses regionais de prefeitos, grandes proprietários de terra e do agronegócio, das mineradoras e das madeireiras que, com suas contribuições, subvencionam as campanhas eleitorais de vereadores, deputados e senadores, e procuram impedir a demarcação das terras indígenas.
Sabiamente, a Constituição de 1988 resistiu contra as tentativas de regionalizar a questão indígena, contando com a ação política mais distante da cooptação regional e, portanto, mais isenta do Governo Federal face às reais necessidades dos povos indígenas. Infelizmente, nesse “olhar mais distante” do Poder Executivo está embutido um fator subjetivo e partidário deste ou daquele governante. A presidente Dilma, que já nos seus discursos de posse do segundo mandato não mencionou os povos indígenas com uma só palavra, está descumprindo a sua promessa de ser presidente de todos os brasileiros. Embora a PEC 215 represente uma iniciativa do Poder Legislativo, o trato político que foi dado à questão pelo Poder Executivo foi o da “batata quente” em detrimento da Constituição Federal.
Para o segundo dia do ATL foi previsto uma vigília noite a dentro diante do Supremo Tribunal Federal (STF), fortemente cercado por policiais. Mesmo sob chuvas torrenciais, as lideranças cantaram e dançaram num ritual com a força que teria feito os muros de Jericó caírem.
Quais foram as reivindicações ao STF? A 2ª Turma do Supremo anulou entre setembro e dezembro de 2014 duas Portarias do Ministério da Justiça e um Decreto Presidencial que reconheceram três terras indígenas legalmente aptas para a demarcação e devolução definitiva aos índios. Os ministros do Supremo achavam o contrário, interpretando que as terras Guyraroká (MS), do povo Guarani Kaiowa, Porquinhos (MA), dos Canela Apanyekrá e Limão Verde (MS), dos Terena, não seriam terras indígenas. A base legal invocada pelo STF foi o chamado “Marco Temporal”.
O “Marco Temporal” é um expediente jurídico introduzido por ocasião da demarcação da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol de Roraima, juridicamente concluída em 2013. Esse “Marco Temporal” foi assumido no decorrer dos debates anteriores entre os Ministros do STF no julgamento da Petição 3388/RR, de 2009. Segundo o então ministro Ayres Britto vale somente para a TI Raposa Serra do Sol e diz o seguinte: terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são aquelas que eles habitavam em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Brasileira, devendo, ainda, haver efetiva relação dos índios com a terra.
“O marco temporal de ocupação” não causou maiores problemas enquanto era respeitada a intenção original do julgador de não lhe atribuir “efeito vinculante” às demais terras indígenas e enquanto vigorou o entendimento sobre “o marco da tradicionalidade da ocupação”. De acordo com a decisão do STF, “a tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios”
Esse acordo legal foi rompido pelas decisões da 2ª Turma do STF ao tratar o “Marco Temporal” como precedente jurídico para outras situações e dando um caráter altamente restritivo ao “renitente esbulho” dos povos indígenas. A Advocacia Geral da União (AGU), braço jurídico do Poder Executivo da Presidência, que por meio da Portaria 303/2012 estabeleceu a vinculação das já mencionadas “Condicionantes” a todas as terras indígenas do Brasil, sincronizou os equívocos jurídicos entre STF e AGU.
A invocação do “Marco Temporal” como precedente e a classificação restritiva do “esbulho” não considera suficientemente que os povos indígenas viveram até a promulgação da Constituição de 1988 em regime de Tutela, que não lhes permitiu reivindicar seus direitos territoriais ou travar disputas judiciais, nem voltar às suas terras, das quais foram expulsos pelas diferentes ondas de colonização. Na questão da demarcação das terras indígenas, o governo Dilma está entrando em águas turvas da amnésia histórica, mostrando sintomas de um Alzheimer jurídico avançado que trata situações de fato como situações de jure.