Decisão tomada pela corte permite o fim do concurso público para contratação de pessoal em todas as áreas sociais do Estado, como hospitais e universidades
Por Najla Passos, na Carta Maior
Os brasileiros passaram a semana protestando contra a terceirização nas ruas e nas redes sociais, com os olhos voltados para a Câmara dos Deputados, onde tramita o Projeto de Lei 4330/04, que libera a precarização em todas as atividades das empresas, aprofundando a incidência de um modelo de gestão que já se comprovou nocivo aos trabalhadores. E, com muita mobilização social, até conseguiram duas vitórias importantes: excluir das empresas públicas dos efeitos nocivos previstos pela matéria e adiar sua votação final para a próxima semana.
Entretanto, foi do Supremo Tribunal Federal (STF) que saiu a decisão que aprofunda o modelo no país, ao extremo de possibilitar o fim do concurso público para as áreas sociais dos governos, como hospitais e universidades, por exemplo. Após 17 anos analisando a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) movida pelo PT e pelo PDT contra as organizações sociais (OS), a corte máxima decidiu, longe dos holofotes da mídia, que o poder público pode terceirizar seus serviços sociais por meio da contratação dessas figuras jurídicas de natureza privada.
Para a secretária-geral do Sindicado Nacional dos Docentes do Ensino Superior (Andes), Claudia March, esta foi uma sinalização importante e perigosa de que o judiciário brasileiro concorda com o modelo de precarização das relações de trabalho imposto pelas organizações sociais que, grosso modo, é a versão para o serviço público do que a terceirização pura e simples faz nas empresas privadas.
“Não nos parece coincidência que os ministros do STF tenham decidido deliberar sobre esse tema, que tramita na corte desde 1998, logo esta semana, quando a Câmara iria votar se as empresas públicas seriam ou não afetadas pelo PL 4330”, afirma ela, que é professora do Instituto de Saúde da Comunidade da Universidade Federal Fluminense (UFF) e se dedica a pesquisar a privatização da saúde no Brasil.
De acordo com a ela, a decisão permite generalizar para todas as políticas sociais a contratação sem concurso público, através das OS, o que já tem mostrado uma face bastante perversa, como bem o sabem os usuários do SUS. “As OS operam via contratos de gestão. O setor público faz um contrato com elas e cobra indicadores. Em geral, indicadores de quantidade, nada de qualidade, como já ocorre no SUS, onde as OS, infelizmente, já estão generalizadas”, explica.
Claudia March ressalta que a decisão do tribunal implica não apenas no fim do concurso público e da carreira para os servidores dessas áreas, mas na perda de qualidade do serviço público prestados a todos os cidadãos. “As OS quarteirizam serviços. As que operam nos hospitais ficam como administradoras: contratam laboratório bioquímico, laboratório de imagem, cooperativas de trabalhadores… por isso, sua adoção não significa melhoria do salário, como pregam por aí. O que se vê na saúde é intensificação do trabalho e aumento da rotatividade. E não vai ser diferente nas outras áreas”, acrescenta.
A sindicalista alerta o modelo, hoje adotado na saúde, agora não deverá demorar a chegar as demais áreas. Segundo ela, o Ministério da Educação (MEC) e o Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT) já avaliam a implementação das OS para contratar professores universitários de forma precarizada. “Nós tivemos, em outubro, a declaração do presidente da Capes de que o MEC e o MCT já estavam estudando a adoção de OS para contratar docentes. Além disso, nas universidades, elas vão generalizar o produtivismo que o governo já impõe”, recorda.
O modelo neoliberal do estado mínimo
A adoção das organizações sociais, à exemplo da privatização clássica e da tercerização, faz parte do receituário neoliberal que visa ao estado mínimo, modelo muito popularizado no Brasil pelo economista e advogado Bresser Pereira, ex-ministro da Fazenda do governo Sarney e ex-ministro da Reforma do Estado do governo Fernando Henrique, quando deu início a sua implantação no país.
“Quando o STF diz que as OS são constitucionais, permite o fim do concurso público para todas as áreas de políticas sociais do estado. É uma generalização da apropriação privada espaço público, que nós temos chamado de `privatização não clássica`, porque a clássica é aquela primeira que o Bresser Pereira fez do setor produtivo, com as empresas estatais”, explica Claudia March.
Ela recorda que Bresser Pereira defendia a privatização direta da parte do estado que atuava no setor produtivo, mas dizia que, na área social, como era impossível operá-la em função das leis protetivas, o caminho era abrir espaço para o setor privado por meio da adoção de entidades privadas sem fins lucrativos, como as organizações sociais. “Ele defendia o que chamava de publicização desses setores do estado, o que na verdade nada mais é do que uma outra forma de privatização”, acrescenta a pesquisadora.
Claudia March observa que, curiosamente, os mesmos partidos de esquerda que, na década de 1990, combatiam o modelo e ingressaram com a Adin 1.923/98 contra as organizações sociais previstas pela Lei 9.637/98, sancionada pelo Fernando Henrique, hoje manifestam posições diversas. O PT votou contra a terceirização na Câmara, mas adota o modelo de organizações sociais na administração do país. Já o PDT votou favorável ao PL 4330/04. “Nos governos estaduais e municipais, todos os partidos, inclusive os de esquerda, já trabalham com esses mecanismos privatizantes”, denuncia.
A pesquisadora acrescenta ainda que Bresser Pereira também defendia a redução dos mecanismos de controle previstos na Constituição, como Controladoria Geral da Uniáo (CGU) e Tribunal de Contas da União (TCU) que, na avaliação do economista neoliberal, oneram o estado. Para ele, os controles poderiam ser feitos por mecanismos do próprio mercado. No caso das OS, pelos conselhos fiscal e diretor, além do próprio contrato de gestão. Na prática, o governo contrataria a OS e cobraria só indicadores.
“Se você estudar o Bresser, vê que é uma proposta que flexibiliza direitos dos trabalhadores, mas que também é muito mais complexa. Caminha para outra configuração de estado mesmo, um estado menos presente e que não necessariamente terá menos custos. Porque a contratação de uma OS fica muito mais onerosa do que o serviço prestado direto pelo estado, conforme já está comprovado”, alerta.
Os votos dos ministros
A decisão do STF que acatou parcialmente a Adin 1.923/98 determina que as contratações das organizações sociais pelo poder público obedeçam critérios objetivos, o que atende ao pedido dos autores da ação. Entretanto, além de reconhecer essas contratações como constitucionais, possibilita que elas sejam feitas, inclusive, sem licitação.
O relator original do processo era o ministro Ayres Britto, que manifestou voto contrário à constitucionalidade das OS. Após sua aposentadoria, foi substituído pelo ministro Luiz Fux, favorável. “Ao contrário do que ocorre com os serviços públicos privativos, o particular pode exercer tais atividades independentemente de qualquer ato negocial de delegação pelo poder público de que seriam exemplos os instrumentos da concessão e da permissão mencionados no artigo 175, caput, da Constituição Federal”, justificou Fux, na decisão.
Seguiram o voto do atual relator os ministros Gilmar Mendes, Teori Zavascki, Carmen Lúcia, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski, nos termos propostos pela Advogacia Geral da União da época de Fernando Henrique, e mantidos pelas dos governos Lula e Dilma. Já os ministros Marco Aurélio Mello e Rosa Weber votaram contra, seguindo a orientação do Ministério Público Federal (MPF). O ministro Dias Toffoli, que atuou no processo quando estava na AGU, se absteve de atuar no processo.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.