Marcela Belchior, Adital
“Lucrar acima de tudo e todos, extraindo o máximo de recursos naturais, com os menores custos possíveis, a partir da desobstrução de qualquer entrave: legislação trabalhista e ambiental e direitos humanos”. É assim que a Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale interpreta a atual participação da empresa multinacional brasileira, que opera nos setores de mineração, logística, energia, siderurgia e petróleo. Para denunciar esta realidade, a entidade acaba de lançar o Relatório de Insustentabilidade da Vale 2015, no qual denuncia mais de 30 casos de violações de direitos em três continentes.
O conjunto de violações de direitos se acumula no Brasil, sede da Vale, e em outros oito países da América, África e Ásia, envolvendo toda a cadeia de produção da Vale em diferentes países onde a empresa opera. O lançamento do relatório acontece em consonância com Semana de Mobilização Nacional Indígena, a Jornada de Lutas pela Reforma Agrária e as mobilizações pela manutenção dos direitos trabalhistas e contra as terceirizações no país.
De acordo com o levantamento, o maior investimento da Vale no mundo, a ampliação da produção em Carajás, no Estado do Pará (Brasil), conta com a duplicação da Estrada de Ferro Carajás (EFC), que está sendo feita com licenciamento irregular, sem a realização de audiências públicas e de consulta prévia, o que é um direito assegurado às comunidades pela Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Já em Itabirito (Minas Gerais), a Vale foi responsabilizada por submeter 309 pessoas a condições análogas ao trabalho escravo.
Com a participação acionária da Vale, o projeto da Usina Hidroelétrica de Belo Monte, que está sendo construído na bacia do Rio Xingu (norte do Pará) tem sido criticado por provocar grande destruição social, ambiental e econômica. Pelo menos 20 processos judiciais são movidos pelo Ministério Público Federal do Pará (MPF-PA). O relatório aponta também casos de desperdício de água. Isto se daria em três minerodutos que ligam Mariana (Minas Gerais) a Anchieta (Espírito Santo), que gastam 4.400 metros cúbicos por hora, o que seria suficiente para abastecer uma cidade de 586 mil pessoas por mês.
O relatório aponta que nos Estados do Maranhão, Espírito Santo e Rio de Janeiro, no Brasil, além de Piura (Peru) e Perak (Malásia), pescadores locais denunciam que os processos de embarque do minério e a contaminação das águas em portos da Vale comprometem sua sobrevivência. Já no Canadá, onde a Vale produz níquel na mina de Voisey’s Bay, o Lago Sandy foi convertido em uma bacia com mais de 400 mil toneladas de dejetos, de acordo com denúncias de organizações locais.
Por sua vez, a usina siderúrgica TKCSA, da qual a Vale é acionista, elevou em 76% as emissões de gás carbônico no Rio de Janeiro. Desde 2010, funciona sem licenciamento ambiental. Outro caso que chamou a atenção está relacionado à espionagem. Segundo o levantamento, por meio de denúncias de um ex-funcionário da Vale, um esquema de espionagem contra movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a rede Justiça nos Trilhos (conjunto de movimentos, associações e cidadãos em defesa da justa compensação por danos causados pela Vale ao meio ambiente e à população) foi revelado. O caso já levou a uma audiência pública no Congresso Nacional, mas a empresa, até o momento, não foi responsabilizada.
Já em Moçambique, o documento aponta que mais de 1.300 famílias reassentadas pela Vale vivem, hoje, com dificuldade de acesso à água, terra, energia, em terras impróprias para a agricultura, além de não terem recebido, até o momento, as indenizações integrais a que têm direito.
Falso discurso de sustentabilidade
Segundo o relatório, a empresa atua em nível global para “transformar recursos naturais em catalisadores de lucros, continuamente crescentes, para os acionistas, desconsiderando os direitos e expectativas dos trabalhadores, comunidades, populações tradicionais e gerações futuras a uma vida digna”. A Associação dos Atingidos aponta na atuação da Vale uma atitude arrogante, acumulação global, sustentabilidade para os lucros e não para as pessoas, além de um legado de severa destruição ambiental, cultural e social.
Em entrevista à Adital, o economista Gabriel Strautman, membro do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs), afirma que o principal valor do estudo é desconstruir o discurso de sustentabilidade que a empresa difunde. “A Vale se diz comprometida com as melhores práticas ambientais e respeito às leis. No entanto, a prática dela é pressionar para que os licenciamentos sejam feitos sem estudo de impacto ambiental”, exemplifica. “Como ela pode querer ser sustentável se não respeita as leis ambientais?”, questiona o economista.
Além disso, ele afirma que o Estado é cúmplice dessa situação, uma vez que facilita, incentiva e fortalece esse tipo de operação na empresa. “O mesmo Estado que, de um lado, fortalece a empresa com licenciamentos irregulares e isenções fiscais, é omisso do outro, porque não vai a fundo na investigação dessas denúncias. Tem um duplo papel”, expõe Strautman.
Segundo ele, governos locais também se coadunam com a Vale, já que possuem certa “dependência” dos royalties que paga a multinacional. “Então, não se levantam contra a empresa”, explica. “Embora a Vale reivindique o papel de uma empresa que compartilha o valor gerado, vemos uma empresa que não paga imposto, que ameaça comunidades. E essa é uma prática insustentável”, defende o economista.
—
Destaque: 312 famílias lutam por reassentamento em Piquiá de Baixo, no Maranhão (Brasil). Foto: Justiça nos Trilhos.