Nuno Milagre – Buala
Seria normal que ao desenhar a minha horta – se tivesse uma – eu desenhasse melhor o canto onde guardo a enxada do que desenharia os contornos da horta da minha vizinha – se ela tivesse uma. E se continuasse a desenhar a rede de hortas das proximidades, punha a minha no centro, e ia acrescentando as hortas da vizinhança para as margens do papel.
Assim se foi desenhando o mapa mundo. Melhor, com mais detalhe e na proporção, as zonas de onde fosse originário quem desenhava. E o resto do mundo que se ia conhecendo a conta-gotas, era desenhado como a horta da vizinha, a olho. As hortas da Europa no centro e no topo, e para as margens as hortas dos continentes vizinhos.
Levou-se tempo a aceitar o que Galileu confirmou: a Terra não é o centro do universo nem sequer da galáxia. Como foi difícil sair dessa armadilha da vaidade de nos colocarmos no centro do cosmos. Mas nem por analogia se chegou à evidência que nenhum continente ou povo tem predominância sobre os restantes. E enquanto se aceitava que a Terra não era o centro de nada, reforçava-se a ideia de que haveria um centro na Terra.
Diz que o mapa mundo é apenas uma representação inócua. Na hora de cristalizar um desenho de mundo, de entre as múltiplas formas em que se projectou a esfera do mundo num plano, acabou por prevalecer o mapa herdeiro da projecção feita por Mercator em 1569. Apesar da distorção da dimensão de massas de terra, era a projecção que melhor funcionava para a orientação da navegação marítima. Se este mapa era útil no mar, também se revelou conveniente em terra, já que a distorção engrandece as zonas mais perto dos polos favorecendo a Europa por oposição às áreas mais próximas da linha do Equador. Um mapa feito para navegar que apresenta parte das superfícies terrestres de forma defeituosa, acabaria por ser o mapa referência para ensinar o desenho dos continentes e dos países nas escolas.
O desenho do mundo é uma montra de como nos é apresentado politicamente.
Ao olharmos as manchas de cores do mapa, cola-se imediatamente a esse olhar uma longa corrente de histórias que escutamos ditas baixinho ao ouvido: zonas de confiança e perigosas, bons e maus, o inóspito e o confortável, aliados e suspeitos, o moderno e o sujo, 1o, 2o, 3o mundo. Não só se cristalizou o desenho em que a Europa aparece maior do que é na realidade e se encontra no centro superior do mapa, como se tentou cristalizar o dogma da superioridade europeia, local onde supostamente se encontra o diapasão que emana o tom a partir do qual todo do mundo deve afinar.
A distorção que favorece a dimensão de uns territórios em relação a outros foi um dano colateral nas contas para garantir a posição relativa dos continentes e facilitar a navegação.
Habituar o olhar a ver sistematicamente a América do Sul e África bastante mais pequenas do que são na realidade resulta numa permanente subestimação do tamanho, importância e diversidade desses territórios. A familiarização com um desenho distorcido do mundo não pode produzir em nós outra coisa que não seja um entendimento distorcido da geografia do planeta.
Condicionar o olhar à representação desigual e hierarquizada do mundo no planisfério é uma das ferramentas da construção das hierarquias culturais.
Por muito que a minha hipotética horta seja central para mim, nunca será o centro de nada nem um modelo universal para a horticultura. A visão autocentrada é uma armadilha que gera o racismo, o conflito e a iniquidade, nas hortas e no mundo.
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Mapa: Angola não é um país pequeno, Paulo Moreira (2011)