Kiluanji Kia Henda terminou 2014 em grande estilo: foi consagrado pela revista norte-americana Foreign Policy como um dos pensadores do ano de 2014. O prémio foi entregue em Washington D. C. (EUA), pelas mãos de John Kerry, o máximo responsável pela actual política externa americana. Curiosamente, o elogio vem do objecto da sua crítica artística: o prémio foi atribuído em homenagem ao projecto “O.R.G.A.S.M.”, nada mais, nada menos, do que uma ONG africana destinada a salvar o Ocidente. É uma reflexão densa e que ultrapassa o jogo de palavras. O artista plástico angolano explica as fundações do seu trabalho – que envolve fotografia, instalação, arquitectura, texto, vídeo – e a força de querer desconversar o mundo
Miguel Gomes – Buala
Foi bancário durante algum tempo, gosta de música e a determinada altura quis mesmo ser músico profissional. Que influências o levaram a fazer fotografia?
Eu cresci num meio de entusiastas da fotografia. Mas a minha primeira relação com a imagem foi com o vídeo. Antes de fotografar, tive a oportunidade de ter uma camera VHS, o que me permitiu fazer pequenas curtas-metragens em casa e com a colaboração dos vizinhos no Bairro Popular. O meu irmão Cassiano Bamba chegou a ter um estúdio de fotografia em casa, com material comprado em Moscovo, no inicio dos anos 90. Mas a minha busca nunca foi o aspecto técnico da imagem, nunca me considerei “o fotógrafo”. Tenho algumas ideias que me incomodam e a minha natureza preguiçosa fez da fotografia a forma mais simples de materializá-las. Mas hoje decidi trabalhar mais um bocado e por isso tenho usado outros meios como o video, a escultura e até mesmo o texto. A música também é uma das minhas paixões, e agora que tenho realizado algumas curtas-metragens tem sido bastante útil, por isso nada se perdeu. Ter trabalhado num banco também foi importante, nos dias de hoje mesmo sendo artista não podemos ser estúpidos quanto ao negócio.
“Kiluanji Kia Henda estava no sul de Angola, quando, ao atravessar uma cidade quase engolida pelas areias do deserto do Namibe, deparou-se com um letreiro de metal enferrujado onde se lia “Miragem”. A palavra carcomida pelo tempo tornou-se de repente um símbolo – algo de extremamente concreto e abstrato. A fotografia daquele letreiro viria a ser o ponto de partida para uma série de trabalhos que formaram uma cidade chamada Miragem.” A introdução faz parte de uma matéria sobre a sua última exposição: que cidade é esta? Que Miragem pretende analisar? O que quer reflectir com estas obras?
Quando ainda trabalhava no banco fiz uma viagem sozinho durante as férias, apanhando boleias desde Luanda até ao Namibe, no inicio de 2005. O impacto de ter estado no deserto alterou completamente a minha percepção sobre o espaço, e também sobre o destino que queria dar à minha vida. Os momentos de solidão foram muito importantes para formular o conceito para este trabalho. Mesmo durante os períodos que passei no Médio Oriente (na Jordânia e nos Emirados Árabes Unides), houve essa confrontação profunda com o vazio. O vazio do espaço e o vazio em mim. Não existe criação sem espaço e não existe espaço sem o vazio. Como artista é importante sabermos que a nossa ignorância é o maior estúdio que alguma vez podemos ter, e isso provoca esta necessidade de busca, de preencher o vazio. Este projecto é, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre as cidades vazias, resultado de toda a especulação económica que temos vivido. Muitas cidades tornaram-se num deserto. Fazer da habitação uma mercadoria fez da arquitectura uma das maiores representações de discriminação social. Infelizmente, na busca voraz da acumulação de capital algumas necessidades básicas como habitação, tornaram-se reféns de elites financeiras. Por isso há duas perspectivas neste trabalho.
Quais?
A primeira, que é mais poética e tem a ver com a topografia do espaço que é o deserto, e a segunda mais ligada a um aspecto politico e económico que implica a transformação do espaço, construindo mas criando outro deserto dentro daquilo que é construído.
A sua obra tem sido marcada por um olhar sobre a história, muitas vezes crítico, muitas vezes mordaz, mas também sempre com alguma ironia… O que o atrai neste tema (história, lugar, ironia)?
Um dos meus sonhos durante a adolescência era ser arquitecto, por isso foi um prazer criar a minha própria cidade, mesmo que fictícia. As imagens e o texto neste projecto dão a ideia de uma cidade em construção mas também de uma cidade já em ruínas. O mais fascinante para mim quanto artista é poder fantasiar, é poder ter a capacidade de acreditar na minha própria mentira e a partir daí materializar a obra. O artista que perde essa capacidade está morto. Dentro do universo da ficção já realizei uma viagem ao sol, tenho a minha própria ONG, já redefini a imagem dos heróis de uma cidade… Tal como na literatura, em que o escritor imerge num universo, que para ele é real enquanto escreve. Isso foi sempre a minha grande paixão com a obra do Jorge Luis Borges. Quando se trata das artes visuais, essa linha entre o real e o fictício torna-se ainda mais difusa. As pessoas passaram a acreditar menos nas palavras, mas quando se apresenta uma imagem, mesmo sabendo do início que se trata de um trabalho artístico que muitas vezes provém da dimensão onírica, cometemos sempre o mesmo erro de encontrar um paralelo forçado com o mundo real. É cada vez mais difícil encontrarmos uma definição para a realidade. E como resultado desta indefinição, entre o facto e a ficção, e com um sentido de oportunismo apurado, os jornalistas hoje tornaram-se nos grandes concorrentes dos artistas. Em jornalismo parece que se tornou legitimo manipular, fantasiar e até mentir, numa profissão que pela ética devia ter um compromisso inquebrável com os factos.
Começou pela fotografia tradicional, digamos assim, pelos momentos da rua, das pessoas, do dia-a-dia, da cidade, e agora está numa fase mais conceptual: em que a fotografia é apenas um dos elementos numa abordagem mais profunda. A fotografia tem as suas limitações?
A fotografia pela fotografia é bastante entediante. O espontâneo, o absurdo no dia-a-dia que vivemos, são situações que prefiro vivê-las sem ser por intermédio de uma câmera. Para ter a capacidade de interpretar, transformar a realidade, e o que nos rodeia, numa obra de arte, é preciso mais do que um clique. Ou seja, está nas mãos do artista moldar a realidade tanto quanto os seus desejos e fantasias, anseios e frustrações. No inicio da minha carreira, circular e fotografar pela cidade foi maravilhoso. Luanda é uma cidade sexy para qualquer fotógrafo. Mas a seguir fui confrontado com outros lugares em que tinha de colocar a imaginação a funcionar. E foi daí que senti que só a fotografia era insuficiente. O facto de antes ter trabalhado com música e teatro também me influenciaram, tanto no aspecto estético, como no conceptual.
Hoje em dia é um dos artistas angolanos mais internacionais. É capaz de ter, ao mesmo tempo, participações em exposições (individuais ou colectivas) em diferentes cidades do mundo. Gostava de ter mais espaço para expor e trabalhar em Angola? Ou o seu trabalho é mesmo uma reflexão universal – partindo sempre de Angola – e que tem fortes pontos de contacto com outras realidades?
Para mim é importante expor em Angola por uma questão afectiva, política, e também pela satisfação pessoal de contribuir com o que faço num lugar onde é necessária uma revolução cultural. Durante os anos de guerra, pensar em ser artista era como um suicídio, uma escolha ditada ao fracasso. Hoje é necessário formar e educar um público, e também a uma elite, alertando que o factor cultural é importante para o desenvolvimento social e pessoal. Não podemos esquecer que, independentemente do lugar que habitamos, somos animais sociais. E daí surge esta reflexão universal. O que vivemos não está restrito ao nosso quintal. Para o bem, e para o mal, cultura é partilhar.
O que acha que as pessoas esperam quando vão a uma exposição sua fora de Angola? Pensa que continuam à espera da velha e rebatida imagem de África, dos pobres e famintos e das crianças esfarrapadas? Ou também esperam encontrar pontos de contacto, ideias comuns, novas perspectivas, ou mesmo uma auto-reflexão crítica sobre a própria história dos lugares onde expõe?
Parte do meu trabalho como artista é desmantelar essa ideia de África como o continente das trevas. A distinção que me foi atribuída recentemente, em Washington D. C. (EUA), pela revista “Foreign Policy”, foi pelo projecto “O.R.G.A.S.M.” – que é um projecto baseado numa ONG africana imaginária que tem como missão salvar o Ocidente. Este projecto é, acima de tudo, uma reflexão sobre como a imagem de uma África miserável e vulnerável é usada pela indústria da caridade. Como forma de obter grandes lucros. Sempre tive consciência da gigantesca influência que as grandes potências mundiais tiveram na minha vida e na história do país de onde venho. Por isso o meu trabalho, muitas vezes, consiste em usar a arte para encurtar as distâncias e melhorar a comunicação. Existe uma estratégia perversa dentro e fora do continente, por parte de muitos intelectuais e políticos, para que não olhemos para a nossa história, como se ela não existisse e não fosse relevante para muitos dos problemas que vivemos hoje. Pois é nessa história que encontramos uma responsabilidade comum, em que o resto do mundo não pode virar as costas. África é um continente extremamente generoso, que teve a capacidade de absorver várias culturas, línguas e religiões, e que ao mesmo tempo contribuiu de forma brilhante e profunda em muitas outras culturas pelo mundo. Mesmo com a sua riqueza a ser delapidada todos dias durante séculos. É importante termos consciência da nossa importante participação na história e na construção do mundo moderno, até por uma questão de auto-estima.
Hoje há uma geração, a sua, que tem dado algumas cartas ao nível das artes plásticas tanto no plano nacional, como internacional. Por vezes, no entanto, parece que os trabalhos falham em investigação, para além de terem muitas referências e traços comuns e mensagens comuns. Concorda?
O trabalho de investigação exige um investimento que vai pra além da criação de uma obra. A falta de investigação é um problema que afecta várias áreas em Angola. E a área cultural é uma delas. É triste termos uma elite que não se importa minimamente com estado da cultura em Angola. Quando compram uma obra julgam estar a fazer um acto de caridade. Mas a arte é das poucas coisas que podemos ter o orgulho de poder dizer que isso ou aquilo “é made in angola”. Que nos dá algum sentido de pertencermos a um colectivo. Somos de um país que vive principalmente de produtos importados, espero que não tenhamos de importar artistas também. Já se vê, em importantes edifícios institucionais, obras de decoração (pinturas e esculturas) feitas na China por um anónimo. Acho um verdadeiro insulto à classe de artistas que vive e trabalha em Angola. As instituições do estado têm que trabalhar mais neste sentido, têm de promover fundos para a investigação e serem as primeiras a incentivar o consumo no mercado de artistas nacionais. Os artistas não investigam mais porque vivem somente daquilo que criam, e isso é o que rege o seu tempo. É sabido que a arte não é só para decorar paredes e combinar com a cor do sofá, ou viver da repetição excessiva dos mesmos padrões tradicionais, o que também é bastante redutor. A investigação é o único caminho que nos pode levar a uma criação mais autêntica e ousada. E também é importante pensarmos na arte como um meio eficaz e excitante de acesso ao conhecimento.
Outros países africanos, como a África do Sul, Nigéria, Quénia, Senegal, Marrocos, têm estado a se envolver cada vez mais com o circuito artístico continental e mundial: exposições, iniciativas, novos valores. Porque temos acesso a tão pouca informação sobre os diferentes movimentos artísticos africanos?
África tem problemas em comunicar entre si. Sempre fui um apologista do Pan-Africanismo, mas essa corrente fez sentido durante a luta de libertação colonial. Hoje existe a necessidade de pertencermos a um mundo moderno, onde quem dita as regras é o mesmo que antes era o colono. Por outras palavras: o Pan-Africanismo morreu. Em 2008, fiz um projecto chamado Icarus 13, sobre a primeira viagem espacial africana, e houve um jornalista indiano do jornal “The Hindu”, que fez referência a este projecto num artigo sobre o programa espacial africano AfriSpace. Adorei a ideia dos países africanos unirem-se para conquistar o espaço, talvez seja uma conquista que nos leve a pensar novamente numa África unida por um mesmo objectivo – e de elevar ao extremo o seu verdadeiro potencial. A cultura ainda é o veículo que nos ajuda a ultrapassar certos preconceitos que existem entre nós africanos, muitas vezes por uma questão de ignorância, ou ainda do medo do desconhecido, mas infelizmente não tem tido a divulgação merecida pela grande media.
Em Angola ainda faltam estudos superiores e uma Escola de Belas Artes, por exemplo, para que se possa falar de arte angolana? Ou estas estruturas formais têm o seu papel, a sua função, mas o que é mesmo importante é criar dinâmica para que as ideias possam surgir?
Sim, existe uma falta de estruturas, desde escolas a museus. Mas espero que nunca exista um conceito que se defina como arte angolana. Angola é uma fabricação colonial, e que hoje convém que exista, pois vivemos num mundo em que somos regidos pela ideia de Estado-nação, soberano e controlando as suas fronteiras. Fora desse registo, estamos a falar de um território imenso onde coabitam várias culturas e grupos étnicos. Essa diversidade por certo daria origem a várias escolas de belas artes, com conceitos distintos de uma beleza rara e única. Essa diversidade e a interacção cultural vai além do conceito de nação. Ela também é parte da contaminação permanente de culturas estrangeiras, própria de um mundo globalizado. Mas claro que são necessárias essas estruturas como forma de albergar as várias ideias, criações e proteger o património cultural – que no fundo é aquilo que nos caracteriza e dá algum sentido à nossa existência.
Entrevista publicada originalmente na revista Austral nº 107.
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Fotos: ‘As God Wants and the Devil Likes It’ (O.R.G.A.S.M. Congress), 2011-2013, obra de Kiluanji Kia Henda
Kiluanji Kia Henda, O.R.G.A.S.M. HeadOffice, Paris, 2011