O polo naval e as comunidades tradicionais do rio Amazonas

Isabela do Amaral Sales e Julio José Araujo Junior, em Consulta Prévia

A floresta, margeada pelo imponente rio Amazonas, parece inabitada. Àquela altura, descendo o Encontro das Águas dos rios Negro e Solimões, porém, a vida é intensa. Ali estão mais de vinte comunidades tradicionais de pescadores e ribeirinhos que moram na região há mais de meio século.

Há décadas essas comunidades enfrentam o exército brasileiro na disputa pela posse de suas terras tradicionais, as quais foram doadas pelo governo do Estado na década de 70 para que ali se construísse a área de treinamento do Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS).

Não bastassem os longos anos de conflito com o exército e a difícil luta pelo acesso a serviços básicos, como o fornecimento de energia elétrica, essas comunidades se viram, em 2012, diante de um problema ainda maior: a possibilidade de implantação de um complexo de construção naval no rio Amazonas.

Inicialmente denominado “Polo Naval de Manaus”, o projeto seria uma tentativa de regularizar os diversos estaleiros instalados na orla na cidade de Manaus. O complexo incluiria, além da instalação de uma área para construção de navios de grande porte, a abertura de estradas e a construção de uma “cidade operária”, destinada a abrigar os trabalhadores. Posteriormente, porém, o projeto passou a contemplar outras finalidades, sendo atualmente chamado de “Polo Naval, Mineral e Logístico do Amazonas”, por incluir, além das atividades de construção naval, exploração mineral e transporte de cargas.

Entretanto, toda a movimentação para construção do Polo Naval se dava sem o conhecimento das comunidades, que foram surpreendidas com a edição de um decreto, em dezembro de 2012, que desapropriou parte de seu território tradicional para implantação do complexo. Além disso, embora afetasse de maneira direta o modo de vida e as estratégias de sobrevivência que aquelas comunidades desenvolveram ao longo de décadas, na concepção do Governo do Estado, o projeto traria apenas benefícios, pois as famílias seriam “incluídas” como mão-de-obra do empreendimento.

As comunidades, então, aproveitando o contexto de mobilização construído em relação ao conflito com o Exército, buscaram o apoio dos órgãos competentes e, em julho de 2013, o Ministério Público Federal expediu uma recomendação direcionada ao Governo do Estado, a fim de que o decreto de desapropriação fosse anulado e as comunidades fossem consultadas na forma estabelecida na Convenção nº 169, da Organização Internacional do Trabalho, ou seja, de maneira livre, prévia, informada e culturalmente adequada.

No entanto, a decisão de construir o Polo Naval naquele local, em meio às áreas de roçados, de coleta de frutos e de pesca tradicional das comunidades, permanecia inalterada.

Diante desse cenário, não houve alternativa senão recorrer às instâncias judiciais. Em abril de 2014, o Ministério Público Federal propôs a ação civil pública nº 6962-86.2014.4.21.3200, com o objetivo de obter a declaração de nulidade do decreto de desapropriação e a realização das consultas às comunidades potencialmente afetadas, na forma descrita na Convenção nº 169 da OIT.

A essa altura, as famílias já vinham sendo frequentemente assediadas pelo governo. Em maio daquele ano, porém, puderam respirar com um pouco mais de tranquilidade: a Justiça Federal, considerando que a criação do Polo Naval acarretaria “a transformação compulsória de integrantes de populações tradicionais em operários florestais”, determinou, em decisão liminar, a suspensão do decreto de desapropriação e de todas as medidas relacionadas ao Polo Naval, enquanto as comunidades não fossem consultadas. Agora, mais do que nunca, o Governo tinha a obrigação de ouvir as comunidades, que receberam a decisão como um sinal de que não estavam sozinhas nessa saga.

Evidentemente, isso não seria tão fácil. Com o objetivo de obter autorização para realizar estudos preliminares na área, o Governo do Estado apresentou um cronograma inadequado e construído de forma unilateral, sem qualquer participação das comunidades, inclusive com prazos apertados, uma verdadeira confissão de desconhecimento do Governo, que demonstrou não compreender, até então, o que seria e como deveria acontecer a consulta livre, prévia e informada.

Assim, em agosto de 2014, foi realizado um seminário, com a participação do Ministério Público Federal, de representantes das comunidades e do Governo, antropólogos, movimentos sociais e organizações não governamentais, para esclarecer as dúvidas e expor os anseios dos envolvidos. Na ocasião, o Governo se comprometeu em realizar reuniões preparatórias, antes de se iniciar o processo de consulta às comunidades.

Desde então, enquanto a ação caminha para suas etapas finais, as famílias do beiradão do rio Amazonas sobrevivem em sua luta diária, entoando como mantra, nas entrelinhas de cada pedido, de cada grito de reivindicação, as palavras de seu Francisco: “nós queremos que o Estado cresça, mas nós queremos também ser respeitados”.

Autores: Isabela do Amaral Sales (mestranda do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas); Julio José Araujo Junior (Procurador da República do Ministério Público Federal).

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