Benedito Teixeira – Adital
O desprezo pela condição de cidadã e de sujeito de diretos das mulheres é tamanho que, em alguns países latino-americanos e caribenhos, até mesmo o aborto espontâneo é criminalizado e resulta em punições severas. Ou seja, é negado à mulher o direito de atender às exigências do próprio organismo, quando este, por algum motivo, não consegue dar prosseguimento a uma gravidez. A constatação é de Rosângela Talib, da coordenação das Católicas pelo Direito de Decidir (CDD) no Brasil, movimento que partindo do ponto de vista teológico feminista luta pelo direito das mulheres de decidirem sobre a sua saúde reprodutiva, incluindo a descriminalização e legalização total do aborto, mas principalmente no caso de risco de vida para a mulher, gravidez por violência sexual e gestação de anencéfalos.
Parece mesmo irreal que uma mulher possa ser punida, inclusive condenada a prisão, por uma interrupção involuntária da gravidez. “É o extremo da culpabilização da sexualidade feminina”, assinala Rosângela, para quem a igreja, em especial as cristãs como a católica, e os valores culturais continuam influenciando de maneira decisiva o imaginário social e as rígidas leis antiaborto na região latino-americana, quando, na verdade, o aborto deveria ser encarado como um problema de saúde pública.
A punição de mulheres que sofrem abortos espontâneos ainda é uma realidade em países latino-americanos. É o caso, por exemplo, de El Salvador, onde não importa se o aborto é espontâneo, ou a vida da mulher corre riscos ou se foi fruto de violência sexual. Lá, interromper uma gravidez, seja qual for o motivo, é crime e quem arrisca abortar pode ser condenada a dezenas de anos de cadeia. Isso também pode acontecer no Chile, Honduras, Nicarágua e República Dominicana.
Na maioria dos países, como o Brasil, a depender do caso, a interrupção da gravidez é permitida em caso de ser espontânea, de risco de vida para a mãe, gestação de anencéfalo e estupro, mas somente até a 20ª semana de gravidez. Aborto voluntário continua sendo crime. Rosângela aponta que, no Brasil, são poucos os casos, mas mulheres continuam sendo condenadas por abortarem voluntariamente. Apenas Cuba, o Distrito Federal mexicano e, mais recentemente, o Uruguai já legalizaram o aborto na América Latina e Caribe.
Em El Salvador, María Teresa Rivera, foi sentenciada a 40 anos por homicídio doloso em 2012. Ela não sabia que estava grávida até que um dia, na fábrica de tecidos onde trabalhava, sentiu uma necessidade urgente de ir ao banheiro. Algum tempo depois, foi encontrada por sua sogra, caída no chão e sangrando. Ela, que nem sabia que estava grávida, sofreu um aborto espontâneo. E por este “crime” foi condenada. María Teresa tem um filho de cinco anos. Quando ela sair da prisão, seu filho já será um adulto.
Já Guadalupe Vásquez tinha apenas 18 anos e trabalhava como empregada doméstica quando ficou grávida e teve um aborto espontâneo. Ela dormia na casa dos patrões, em um quarto pequeno, que nem sequer tinha luz elétrica. Foi nesse quarto onde teve as complicações obstétricas e um parto precoce. Em estado de choque e com um sangramento severo, foi levada ao hospital. Lá, Guadalupe foi acusada pelo pessoal médico por aborto e, durante o julgamento, foi modificada a tipificação do delito a homicídio qualificado, sendo condenada a 30 anos de prisão.
Mesmo entidades que atuam pela não legalização do aborto como o Movimento em Favor da Vida (Movida), no Brasil, condenam a criminalização do aborto no caso de ser espontâneo. “Não podemos exigir que a mulher controle seu próprio organismo e, mesmo no caso de aborto voluntário, devemos procurar entender as razões que levaram a mulher a fazer isso, muitas vezes, pressionada pela própria família e/ou pelo parceiro”, assinala Fernando Lobo, fundador do Movida, destacando que, em primeiro lugar, deve vir a vida da mulher, ainda que ressalte que aquelas que fazem abortos voluntários no Brasil estão sujeitas a punições. Mesmo no caso da gestação de anencéfalo, ele defende que a mulher aguarde um aborto espontâneo e não provocado. Nas ocorrências de estupro, ele entende que cada caso deve ser avaliado isoladamente.
Para Lobo, a informação de que há milhares de mortes de mulheres em decorrência de abortos por ano no Brasil é uma falácia. “Você conhecia alguém que já morreu por causa de aborto? Pelos números do SUS [Sistema Único de Saúde], o número de óbitos em decorrência de abortos não passou de 100 casos, se não me engano, em 2011”, observa. Em contrapartida, há estudos que estimam serem os abortos o quinto maior causador de mortes maternas no Brasil. Com base em números do DataSus, a imprensa tem divulgado que são realizados cerca 850 mil abortos clandestinos por ano no Brasil. O número de internações por complicações durante abortos passa de 200 mil, sendo 155 mil por interrupção induzida.
Lobo, do Movida, e Rosângela, das CCD, concordam em um ponto: é preciso fortalecer as iniciativas de educação em saúde sexual e reprodutiva das mulheres, ampliando o acesso a métodos anticonceptivos. Para a membro das Católicas, engana-se quem acha que a legalização do aborto provocará uma corrida aos hospitais. As experiências mostram que, pelo contrário, a legalização do aborto acarreta uma maior conscientização da sociedade sobre a prevenção da gravidez e, em países que já legalizaram, como é o caso do Uruguai, os índices de abortos provocados reduziram com o tempo.
O aborto e a igreja
Na avaliação de Rosângela, das CCD, a igreja católica, mesmo com abertura progressista possibilitada pelo Papa Francisco nos últimos dois anos, não avançou praticamente nada na discussão sobre os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres. Ou seja, a mulher continua sendo reprimida em sua sexualidade. “A igreja continua pregando que o sexo só deve ser aceito se for dentro do casamento heterossexual e com vistas à procriação, o que está muito distante da revolução sexual por que vêm passando as mulheres”, observa Rosângela.
Campanhas
Entidades de direitos humanos como o Grupo Cidadão pela Despenalização do Aborto, em El Salvador, e a Anistia Internacional lutam para proteger as mulheres condenadas por sofrerem abortos. Ainda na semana passada, o Parlamento de El Salvador aprovou um indulto para Guadalupe Vásquez, que cumpria a pena de 30 anos de prisão por ter sofrido um aborto espontâneo. Na avaliação das instituições, a decisão deve agora servir de precedente para outras 16 mulheres salvadorenhas que permanecem presas devido à penalização total do aborto e abrir a porta à necessária mudança da lei.
Uma das maiores defensoras de Guadalupe Vásquez é Morena Herrera – figura de destaque na luta pela liberdade em El Salvador, feminista e ativista dos direitos sexuais e reprodutivos – que explica as razões por que a penalização total do aborto naquele país tem de ser anulada. Desde 2009, ela está nessa luta, através da associação que lidera – o Grupo Cidadão pela Despenalização do Aborto.
“Um dia recebi um telefonema. Era uma estudante que estava no banheiro de uma escola, com uma hemorragia. Pedi a uma colega que a levasse a um hospital privado. Ela tinha sido violada nas imediações da universidade [e engravidado], mas não contou a ninguém. Tomou umas cápsulas feitas de soda cáustica, que lhe destruíram as paredes das artérias – mas continuava grávida. Para nós, este é o dilema: preferimos ver esta pessoa morta ou na prisão? É esta a realidade que vivemos todos os dias. É arrasador”, descreve Morena.
A gravidez indesejada é uma realidade dolorosa para muitas mulheres e jovens em El Salvador. Como Morena Herrera salienta, em 36% dos nascimentos registrados em hospitais, as parturientes têm entre nove e 18 anos. Sem uma educação sexual adequada, com acesso muito limitado a contraceptivos e a proibição total do aborto, as jovens são deixadas sem nenhuma outra saída – a não ser a dos abortos clandestinos (35 mil por ano) ou do suicídio (com uma taxa de 57% das mortes durante a gravidez).
Diante dessa realidade, a Anistia está promovendo uma campanha para pressionar o presidente de El Salvador, Sánchez Cerén, a descriminalizar o aborto no país; libertar incondicional e imediatamente todas as mulheres e meninas presas por se submeterem a um aborto ou por abortarem espontaneamente; garantir o acesso a aborto seguro e legal a todas as mulheres e meninas nos casos de estupro ou incesto, quando a saúde da mulher estiver em risco e quando for improvável que o feto sobreviva; e garantir o acesso à informação e serviços modernos de contracepção e proporcione uma educação sexual integral para todos e todas. Qualquer pessoal em todo o mundo pode preencher o formulário e assinar a petição.
Mulheres estupradas, mesmo a legislação permitindo o aborto neste caso no Brasil, até a aprovação da lei de 2013, que obriga o atendimento em hospitais públicos, era muito difícil realizá-lo pelo SUS.
Por maioria de votos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo deveria ser punida de acordo com o Código Penal.
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Foto: Católicas pelo Direito de Decidir lutam pelos direitos reprodutivos e sexuais femininos à luz do catolicismo