Por Elaine Tavares*, em Palavras Insurgentes
A riqueza que se esconde sob o solo da Nigéria é sua desdita. Ali está uma das maiores reservas de minério fóssil do mundo, cerca de um milhão de quilômetros quadrados de puro petróleo. Há jazidas de outros minérios, mas o principal é o óleo negro, que representa 20% do Produto Interno Bruto do país, 95% das exportações e 80% da receita nacional. Não é sem razão que a guerra esteja corroendo seu território e matando sua gente. A lógica da terra arrasada para melhor dominação ainda segue em vigência naquelas paragens e nesse caldo de guerra à morte pelas riquezas, é a religião que vem sendo usada para “justificar” a barbárie. Em nome de “deus” grupos de várias cores se digladiam para tomar conta do petróleo.
Nos últimos meses o chamado “grupo radical islâmico” Boko Haram tem protagonizado uma série de ataques, de requintado terror com o objetivo de, segundo pregam, estabelecer a Sharia (lei islâmica) nos 36 estados que conformam o país. A Nigéria tem hoje 174 milhões de habitantes, sendo o país mais populoso do continente e o sétimo país mais populoso do mundo. Convivem no seu território mais de 500 grupos étnicos, mas os mais expressivos são os hauçás, os igbos e os iorubás. Do ponto de vista religioso o país é praticamente dividido entre os que professam a fé cristã (mais centrados no sul) e os muçulmanos (ao norte), mas também há os que praticam as religiões tradicionais como as igbo e iorubá.
Apesar de ser um país laico é justamente a religião que vem sendo usada para dar vazão aos desejos de apropriação da riqueza. Nascido no norte, onde predominam os muçulmanos o grupo Boko Haram foi fundado em 2002, na cidade de Maiduguri, no Estado de Borno, por Ustaz Mohammed Yusuf, que o liderou até 2009. Hoje o comando está nas mãos de Abubakar Shekau e a sede foi levada para a cidade de Kanamma, onde fica o que chamam de central operativa “Afghanistan”. Desde ali, o grupo vem realizando sequestros e atentados contra as forças policiais nigerianas e contra a população civil.
Desde o final de 2001 que o norte do país vive em estado de alerta e o governo chegou a declarar estado de emergência em função da sequência de atentados e ações violentas, inclusive contra centros educacionais, já que eles acreditam ser a educação laica um grande mal. Até o ano passado, essa luta era considerada uma questão interna e não havia muita informação sobre o grupo. Mas, no início de 2014, o ataque a uma escola cristã, no qual os integrantes do Boko Haram queimaram vivas 60 crianças, colocou o problema em evidência nos jornais europeus. Pouco depois o grupo invadiria a cidade de Bama, num ataque violento deixando milhares de vítimas e famílias desalojadas.
O mês de abril trouxe mais uma notícia envolvendo o Boko Haram. Militantes invadiram outra escola, desta vem em Jibik, seguindo com a campanha contra a educação ocidental e sequestraram mais de 200 meninas, as quais o líder prometeu colocar à venda depois de convertê-las ao islã. Relatos de meninas que conseguiram escapar – divulgados nos jornais europeus – dão conta de violações sexuais e outras torturas, além da degola quando se recusavam a conversão.
Conheça o país
A Nigéria congrega atualmente quase um quarto da população do Oeste Africano. Embora menos de 25% estejam vivendo na zona urbana, existem cerca de 24 cidades com população de mais de 100.000 habitantes. O país tem uma grande taxa de fecundidade e um exponencial crescimento populacional. O Departamento de Recenseamento dos Estados Unidos, que está de olho no país, estima que a população da Nigéria atingirá 356 milhões em 2050 e 602 milhões em 2100, ultrapassando os próprios Estados Unidos como o terceiro país mais populoso do mundo.
A Nigéria está de frente para o oceano atlântico, na parte oeste do continente africano, bem na voltinha que se encaixaria no nordeste brasileiro na mítica Gaia. Faz divisa com Camarões, Benim, Níger e Chade. No seu território está parte do maciço de Adamawa, ou as Montanhas Gotel, com 2419 metros, em Chappal Waddi, o ponto mais elevado do país. Seu tamanho é um pouco maior do que o estado brasileiro do Mato Grosso e língua oficial é o inglês.
Antes da dominação portuguesa e britânica o território era espaço do império Kanem-Bornu, que dominou a parte norte da Nigéria por mais de 600 anos. Era uma próspera rota de comércio entre os norte-africanos e o povo da floresta. Ao longo de sua história o povo daquele lugar constituiu sistemas de organização política muito bem elaborados, tanto que em 1471 quando os portugueses desceram pelo litoral africano encontraram uma corte próspera com a qual estabeleceram, em princípio, laços comerciais até o fim do século XVI, quando começou com mais intensidade o trafico de escravos.
Durante os séculos que se seguiram os portugueses e os britânicos dominaram a região estabelecendo entrepostos para a realização do melhor negócio daqueles tempos, que era o tráfico humano. No ano de 1886 foi criada a Companhia Real do Níger, sob o comando da Inglaterra e em 1900 esse país europeu já fincava suas garras no lugar, criando os protetorados. Em 1914 formaram a colônia da Nigéria, cujo nome surgiu da fusão entre as palavras Niger (do rio Níger) e area (palavra inglesa para “área”), e foi dado pela mulher do Barão Lugard, que administrava o território naqueles dias.
A independência veio no ano de 1960, no rastro de todo o processo de libertação que tomou conta do continente. Mas, de qualquer forma, a ascendência inglesa continuou, pois havia riqueza demais para ser deixada para trás. Internamente o país seguiu em convulsão e em 1966 grupos militares se enfrentam na disputa pelo poder. A etnia mais expressiva, a dos igbos, chegou a declarar independência em 1967, criando, a partir de uma sangrenta guerra civil, a República de Biafra. Mas, ao final foram derrotados. Desde aí o país vem passando por sucessivos golpes e alguns momentos de governo civil. Atualmente, o presidente é Goodluck Jonathan que, sendo vice, assumiu o cargo em função da morte de Umaru Yar´Adua, escolhido em eleições livres na chamada Quarta República iniciada em 1999, quando retomou-se democracia, o que no caso da Nigéria foi a retomada das eleições e o fim do segundo regime militar.
Nas análises recolhidas dos periódicos europeus – que dão maior cobertura à política dos países africanos – há uma generalizada crença de que o presidente Goodluck tem sido bastante fraco na ação contra o chamado “grupo radical”. E há que se levar em conta também a sistemática intervenção das potências ocidentais na região. Os britânicos seguem por lá. Os Estados Unidos tem uma base militar justamente na fronteira norte do país, a qual rastreia com seus drones. Há quem defenda que o Boko Haram tenha sido – tal qual o Al Kaeda – criado pela inteligência estadunidense para desestabilizar o país tornando-o alvo seguro para uma ocupação. Não nos esqueçamos que ali estão grandes reservas petrolíferas. Além disso, a Nigéria vem se destacando como uma grande potência regional. O seu PIB, em 2013, foi o maior do continente, 500 bilhões de dólares. O pequeno país é uma mina de ouro, enquanto a sua população vive entre a pobreza extrema e a ameaça de extermínio. O país tem os piores índices de qualidade de vida. Uma contradição só explicada pela voracidade da classe dirigente, sempre aliada aos interesses estrangeiros. Hoje, o rentismo petroleiro é prioritário. A economia tradicional, baseada no cultivo do cacau, café, banana e azeite de dendê está entregue às moscas e o país importa alimentos.
Recrudesce a ação do Boko Haram
Nas últimas semanas as ações do grupo islâmico fundamentalista voltaram a tomar conta das manchetes. Além de seguir com o rapto de crianças, o grupo as utiliza como bombas vivas nos ataques que realiza pelo norte e noroeste do país. Poucos jornais arriscam dizer o número seguro de vítimas provocadas pelo grupo, mas já passam de milhares. As técnicas são justamente o assassínio em massa, as ações suicidas, violações e o uso dos prisioneiros – maioria meninas – como escravos.
Os jornais europeus dão conta de que no último dia de 2014 mais 40 crianças foram raptadas no estado de Borno. E, na semana em que ocorria o atentado na França, o Boko Haram atacou a cidade de Baga, deixando mais de dois mil mortos. Conforme relato de testemunhas ouvidas pelo jornal português “O Público”, eles chegaram atirando a esmo, matando quem encontravam pela frente, e quem se escondeu dentro de casa foi queimado vivo. O Ministério da Defesa nigeriano nega que tenham sido duas mil pessoas mortas, diz que foram “apenas” 150. As Nações Unidas não confirmam o número de mortos, mas diz que existem mais de 150 mil pessoas desalojadas e em êxodo na região norte.
O fato é que os ataques do Boko Haram podem esconder interesses bem mais profanos do que a vontade de implantar o islã. Com o fim do bloco socialista e a impossibilidade de criar o inimigo “comunista”, agora as nações ricas já consolidaram um outro inimigo comum: o “terrorista”, que, inclusive, tem cara e nome árabe. É inegável que os grupos extremistas existem e atuam de maneira ultra violenta. Mas, também é preciso considerar que muitos deles são incentivados e financiados pelos países centrais para criar o caos. Isso já aconteceu no Afeganistão, no Iraque, na Síria. Depois, eles servem de argumento para missões de ocupação estrangeiras e toda a riqueza dos países invadidos escoa para fora.
A Nigéria está em processo eleitoral, o novo presidente será escolhido agora, em 14 de fevereiro. Assim, as ações, cada dia mais violentas, do Boko Haram estão mergulhadas nesse contexto. Na segunda-feira (12/01), o grupo atacou uma base militar no vizinho país, Camarões, o que o torna ainda mais perigoso. Segundo informações de jornais europeus, a batalha durou cinco horas e 150 pessoas morreram. Também se sabe que a França tem sido um país bastante atuante na Nigéria chegando inclusive a organizar uma conferência com os presidentes da Nigéria, Camarões e Benin para constituir um plano de defesa. Como convidados especiais da reunião compareceram também a Inglaterra e os Estados Unidos. Os argumentos para a presença dessas potências e o interesse da França são de que o Boko Haram teria ligações com a Al Kaeda e poderia ser um perigo para a Europa.
Então. Tudo está ligado. Há mais coisas aí do que pode sonhar nossa capacidade de conspiração. Enquanto isso, milhares de pessoas estão em fuga.
*Com informações dos jornais O Público, El País, Euronews