Casos como o de Ferguson recordaram à comunidade negra norte-americana que os seus filhos não têm o mesmo direito à vida que os outros pequenos americanos. Por quê? Por nem sequer serem vistos como crianças, mas sim como ameaças às vidas dos brancos
Por Stacey Patton, no Washington Post/Brasil 247
Os Estados Unidos não proporcionam os elementos fundamentais da infância às meninas e meninos negros. A infância dos jovens negros é considerada naturalmente inferior, perigosa e indistinguível da vida dos adultos. As crianças negras não merecem a mesma presunção de inocência que as crianças brancas, em especial em situações de vida ou morte. Prestem atenção à descrição que o agente de polícia Darren Wilson fez do seu conflito com o adolescente negro Michael Brown, que estava desarmado, em Ferguson, no estado de Missouri.
No seu testemunho perante o grande júri, Wilson qualificou Brown como “demônio” e “agressivo” e que troçara dele quando dissera: “Você é tão frouxo que não terá coragem para disparar”. Wilson, que mede mais de 1,90 m e pesa 95 quilos, disse ao grande júri: “Senti-me como se fosse um garoto de cinco anos tentando agarrar o Hulk”. Ele me pareceu enorme e me senti muito pequeno só de lhe segurar o braço”. Wilson afirmou que, antes de lhe ter dado um tiro na cabeça, Brown correra em direção a ele por entre uma chuva de balas. A história dessa noite (9 de agosto 2014) apresenta o policial Wilson como uma criança branca inocente que se sentira tão ameaçada por um animal grande e preto que a sua única opção fora usar a sua arma de serviço.
Ao anunciar a decisão do grande júri de não acusar Wilson, o promotor público Robert P. McCulloch atacou o caráter de Brown e recordou, com pormenores macabros, os relatos contraditórios da reação do corpo de Brown ao disparo. Este tipo de descrições, muito semelhantes às que eram apresentadas no século 19 em defesa do linchamento, é frequentemente usado quando uma criança ou um adolescente negro é morto a tiro nos EUA.
Linchamento de negros
Em 1955, depois de Emmett Till, de 14 anos, ter sido espancado e morto por um grupo de homens brancos, um dos seus assassinos disse que o adolescente “ parecia um homem”. Encontrei declarações idênticas nas notícias dos linchamentos de rapazes e moças negros, entre 1880 e o começo dos anos 50. Testemunhas e jornalistas centravam- se no tamanho das vitimas, com idades entre os 8 e os 19 anos. Essas vítimas eram acusadas de ataques sexuais a moças e mulheres brancas, de roubar, de bater em bebés brancos, de envenenar os patrões ou de lutar com os seus colegas brancos. Às vezes de proteger jovens negras de ataques sexuais de homens brancos. Ou eram simplesmente linchados sem motivo.
Em 2013, nas alegações finais do julgamento do segurança George Zimmerman, que seria absolvido das acusações de homicídio em segundo grau e de homicídio involuntário do adolescente Trayvon Martin (na noite de 26 de fevereiro de 2012, em Stanford, Flórida), o advogado de defesa, Mark 0’Mara, colocou dois bonecos de cartão em tamanho real, em frente da bancada do júri. Um dos bonecos representava Zimmerman, 29 anos, medindo 1,70 m e pesando mais de 90 kg, e o outro Martin, 17 anos, com 1,75 m de altura e 71 kg de peso.
Seguido por um “brutamontes sinistro”
O’Mara declarou que esta reconstituição à base de bonecos de cartão tinha como objetivo ajudá-lo a mostrar a diferença de altura e peso entre os dois intervenientes na cena. Recorrendo à animação digital, o advogado tentou convencer os jurados de que o guarda noturno do bairro, clinicamente obeso, tinha temido pela sua vida enquanto lutava com Martin, que era 5 centímetros mais alto, e isso justificaria que tivesse disparado, num ato de legitima defesa, contra o adolescente. Ao longo do julgamento, a defesa de Zimmerman referiu-se Martin como um jovem adulto.
Na sua contra-argumentação, o promotor John Guy designou repetidamente Martin por “rapaz”, numa tentativa de restabelecer a sua juventude e de o mostrar como um adolescente inocente, que temeu pela vida quando se viu perseguido e depois atacado por um adulto. Guy perguntou ao júri: “Não será o pior pesadelo de todas as crianças. serem seguidas por um estranho, na escuridão, a caminho de casa?” Na última conversa que teve ao celular com a sua amiga Rachel Jeantel, Martin dissera que estava sendo seguido por um “brutamontes sinistro”.
Naquele julgamento estava em jogo, não apenas determinar a culpa ou inocência de Zimmerman, mas também se Martin era, ou não, uma criança. O mesmo voltou a acontecer no caso do disparo mortal contra Tamir Rice, de 12 anos, a 22 de novembro. Tamir, que foi descrito como sendo “alto para a idade”, brincava nas proximidades de um centro esportivo, em Cleveland. Ele foi visto sentado, com uma pequena espingarda de pressão de ar na mão. Numa gravação do 112, uma testemunha disse: “O garoto a armava e desarmava continuamente. Não era uma arma de verdade, mas ele a apontava para as pessoas. Devia mesmo ser um garoto”.
Trata-se de uma criança, e não de um adulto
Não se sabe se foi algum funcionário do centro que chamou a polícia, mas ao responder o chamado o agente policial comentou que provavelmente se trataria de uma criança brincando com uma espingarda de pressão. De qualquer forma, alguns policiais foram averiguar. Disseram que ao encontrar Tamir, o garoto não levantou os braços como eles solicitaram. Em vez disso, teria levado as mãos à cintura, onde estava a arma. Por isso foi abatido com vários disparos.
O advogado da família de Tamir, Timothy Kucharski, perguntou aos agentes policiais por que não atuaram com maior cautela. “A polícia tem de lidar com essas coisas no contexto adequado. Estamos falando de uma criança de 12 anos e não de um adulto. Seria natural pensar que vocês lidariam com crianças de uma forma diferente daquela com que lidam com adultos. As crianças nem sempre compreendem o que se passa”, argumentou Kucharski.
“Nesse caso o policial que atirou não fazia ideia de que ele tinha 12 anos”, declarou Jeff Folmer, presidente da Associação de Agentes de Patrulha da Polícia de Cleveland. “Estava mais concentrado nas mãos do garoto do que na sua idade.”
A superavaliação da idade das crianças negras começa antes mesmo dos l2 anos
Um estudo publicado em 2014 no Journal of Personality and Social Psychology que, há tempos, publicou estudos racistas sobre crianças negras – associou a maior utilização da força pela policia contra crianças negras à percepção generalizada de que, aos 10 anos, estas são menos inocentes do que as crianças de outras etnias. O estudo citava igualmente o Serviço de Dados sobre a Educação, segundo o qual,nas escolas, os alunos negros têm mais probabilidades de serem severamente castigados do que os alunos com pele de outra cor que cometam as mesmas infrações.
Independentemente dos casos considerados, a atuação da policia é invariável e previsível: “não era uma criança, era uma ameaça”, “eu estava com medo e tive de me defender”. Despojada da sua condição de criança, o pequeno negro é apresentado como uma ameaça, é essa é a versão que passa a prevalecer na avaliação jurídica das situações.
Os riscos que as crianças negras enfrentam – de verem o seu perfil traçado com base na cor e de serem candidatos prioritários à detenção e ao encarceramento – estão firmemente enraizados na história. Depois da Guerra Civil (que terminou em 1865), o estabelecimento da igualdade política para milhões de negros recentemente libertados significava que a nova geração de crianças negras se tornaria adulta com direitos iguais. Por isso, depreciar as crianças negras passou a ser fundamental para a manutenção do racismo e da desigualdade na vida dos norte-americanos.
Na “era Jim Crow” (durante a qual alguns estados do sul publicaram leis locais segregacionistas) as crianças negras cresceram como cidadãos e trabalhadores livres. Ao contrário dos seus pais e avós, elas não tinham memória da escravatura. Surgiram por causa disso novas estratégias para as confinar, para lançar dúvidas sobre a sua capacidade intelectual e os seus direitos, para menosprezar o valor do seu trabalho e, até, delas próprias como seres humanos.
Fetos negros com cérebro menor
Na virada do século 19, a literatura pediátrica americana ainda incluía artigos de médicos que afirmavam que os corpos das crianças negras e os corpos das crianças brancas se desenvolviam de forma diferente. Segundo os investigadores brancos, o feto negro tinha um cérebro menor, nariz mais largo, lábios mais grossos e mãos e pés “simiescos”. Alguns psicólogos analisaram e compararam os comportamentos de bebês brancos e negros e concluíram que os bebés negros nasciam naturalmente inferiores e animalescos.
Através de medições e exames anatômicos do cérebro, médicos e antropólogos procuraram provar que os lobos frontais das crianças negras fechavam durante a adolescência. E, quando isso acontecia, os seus cérebros paravam de evoluir enquanto os seus órgãos genitais cresciam demais, o que representava uma ameaça sexual para a comunidade branca. Alguns políticos chegaram a defender abertamente a castração dos rapazes negros e, na Carolina do Norte, milhares de moças negras foram esterilizadas à força.
As leis de Jim Crow tiveram efeitos muito mais vastos e nocivos sobre as crianças negras do que as refregas diárias em escolas e cantinas segregadas parecem indicar. Como objetos de experiências dos médicos ou da violência do Estado, bebês e crianças estiveram expostos à lógica desumanizadora e cruel da classificação e do domínio raciais. Pais e professores negros tentaram mitigar esses efeitos nocivos e proteger crianças e jovens. Infelizmente, sofreram mais derrotas do que sucessos, mas os seus esforços revelam que, na época Jim Crow, até cuidar dos próprios filhos era motivo de ataque – e por isso tornou -se uma importante área de resistência.
Enquanto o ciclo de vida dos brancos inclui inocência, crescimento, civismo, responsabilidade e entrada na idade adulta, a negritude é caracterizada como a inversão de tudo isso. Por um lado, as crianças negras são apresentadas como adultas. Por outro, e de forma igualmente perversa, os adultos negros ficam fechados num limbo de infância, e são considerados irresponsáveis, malcriados, criminosos e inatamente inferiores. Através da detenção de adultos negros e da exagerada colocação de crianças negras em famílias de acolhimento, o Estado age como pai, mas ao mesmo tempo alija a sua responsabilidade de investir em crianças de cor. No caso de Ferguson, o Estado declara ostensivamente: não e’ nossa responsabilidade proteger os filhos de vocês.
Quando leem as noticias dos assassinatos de Jordan Davis, Darius Simmons, Trayvon Martin, Michael Brown, Aiyana Stanley-Jones, Renisha McBride e tantos outros, os pais negros são obrigados a instilar medo nos filhos – avisando-os dos perigos que os brancos e a polícia podem representar. Estas palavras de advertência não bastam para superar os séculos de atitudes e políticas que estiveram por trás dos assassinatos de crianças negras por brancos.
Os inúmeros jovens que, nas escolas, nos órgãos de comunicação social e nas ruas protestam contra a palhaçada mentirosa de Ferguson tentam garantir que as crianças de cor possam ser crianças – e, também, viver até serem adultas.