Como se nutre o monstro?, por Jean-Pierre Leroy

Frente ao atentado contra o Charlie Hebdo e os cartunistas, não posso me impedir de fazer alguns comentários, mesmo que bem parciais.

Em 1959, estudante, nas férias, acompanhei uma turma de jovens argelinos, quase da minha idade. Seu país estava em guerra anti-colonial contra a França e tinham sido enviado à França não lembro por quem nem como, mas com certeza na perspectiva de lhes mostrar como a França era generosa. Eles estavam atormentados, se sentiam inferiorizados. Tive a ideia de levantar seu astral organizando e ‘dando’ alguns cursos sobre a história árabo-muçulmana seus pensadores, filósofos, matemáticos. Acho que, a contrário do que se esperava dessa estadia na ‘metrópole’, voltaram mais conscientes da necessidade imperiosa da descolonização.

Em 1962, cumprindo o ‘serviço militar’, depois dos primeiros meses de treinamento fui transferido para o primeiro regimento de volta da guerra da Argélia, em Mulhouse, no leste da França. Um belo dia, efervescência no quartel. Uma turma de exaltados dava a palavra de ordem: hoje a noite, vamos no centro bater nos “bougnouls” (os norte-africanos, presentes desde os anos 50 na cidade, fazendo os  trabalhos que os franceses não queriam para eles). Descobrimos que tinham o apoio expresso do capitão e do coronel. Na hora do fim do expediente, a tropa formada, avançamos, três colegas sargentos, e questionamos o que estava acontecendo. Não houve descida ao centro nesta noite e por muita sorte não fomos punidos. Não faltaram noites de ‘pogrom’ em outras noites e em outras cidades.

Como padre, vivi de 1968 a 1971 num subúrbio de Roubaix, uma  cidade do têxtil decadente do norte da França, pertencente à metrópole de Lille. Franceses pobres, alguns migrantes de origem polonesa de antes da segunda guerra, alguns italianos, espanhóis, mais portugueses e sobretudo norte-africanos, em particular vindo da Argélia, mal saída da  guerra colonial. Os bairros estavam novos em folha, mas ficava clara a segregação com a cidade e outros novos bairros de classe média. Faltava trabalho e o futuro não se anunciava promissor para a juventude sem perspectiva para além do primeiro grau escolar.

Vamos ao HOJE. Lido na imprensa brasileira:

“O filósofo francês François L´Yvonnet, secretário executivo da Academia da Latinidade, acompanha de perto a tentativa de aproximação das culturas, tarefa primordial da Academia, e tem também uma visão das questões francesas que estão em jogo nesta tragédia. Ele classifica o ataque ao Charlie Hebdo de “um acontecimento inominável, um atentado particularmente inqualificável à liberdade de expressão”.

Mas há outras razões, particulares da França, para serem analisadas, diz L´Yvonnet. Para ele, a violência que se imiscui na sociedade francesa está presente na escola, nas ruas, em certas comunidades (judaicas e muçulmanas em particular). É esta violência, com alguns grupos particularmente radicalizados, que se expressa hoje (ontem).

Para L´Yvonnet, a França, por seu passado colonial, e pela importância de sua comunidade árabe-muçulmana, está exposta à frente da crise que abala o sul do Mediterrâneo, “crise vivida muito intensamente e quase em tempo real pelos subúrbios de nossas grandes cidades”. A integração republicana dessa comunidade é um desafio global, analisa, rassaltando as questões sociais que estão em disputa: exclusão, desemprego, evasão escolar, violência, zona de não-direitos.

“O que nós oferecemos às crianças dos subúrbios? Quais suas perspectivas?” É preciso ser lúcido, diz L´Yvonnet: “Numerosos entre eles não têm outra perspectiva de sucesso social que a droga ou os assaltos a mão armada. Outra perspectiva de sucesso individual é a adesão largamente fantasiada ao Islã político”.

Como professor, François L’Yvonnet diz que mede a mudança de atitudes de certos estudantes muçulmanos, “que não têm mais o perfil baixo, mas reivindicam fortemente o seu pertencimento a um Islã orgulhoso de si, feito de solidariedades transnacionais”.

Ele alerta que “o amálgama será feito certamente entre uma pequena minoria de radicais e o conjunto da comunidade, composta de vários milhões de indivíduos. O amálgama clássico. Não há nada de surpreendente”. Mas admite que “encontra um terreno propício numa França formando a imagem detestável da religião muçulmana pela ignorância sobre a cultura árabe-muçulmana e o desprezo que é dado aos árabes”.

Para François L´Yvonnet, a França não está sendo confrontada por um inimigo externo. “Está sendo confrontada por ela mesma, suas contradições, seus temores políticos, seus maus hábitos pós coloniais”*.

Uma mensagem do meu sobrinho:

“Como você viu nas mídias, o ano começa muito mal na França. E o medo de todos  se realizou, com  uma pertinência cruel na  escolha dos alvos visados. Aqui todos estão um  pouco sob o choque, e a gente não espera qualquer melhoria. Não falta muita coisa, creio eu, para que se entra em engrenagens destrutores. E estamos muito preocupados de constatar que o que é popularizado sob  o termo de “solidariedade nacional”, de afirmação  dos valores da República,  não vale para os subúrbios. Os muçulmanos não correram às manifestações de apoio, os alunos de Isa (esposa do meu sobrinho, professora de segundo grau no subúrbio de Estrasburgo, no leste da França), sem aprovar o que aconteceu, salientam o fato que o jornal Charlie Hebdo ia longe demais e que o ação terrorista era com certeza um complô visando a estigmatizar os muçulmanos… A próxima viagem escolar de Isabelle a Auschwitz promete ser interessante”

Uma  semana antes, uma jovem amiga, professora de segundo grau em liceu de Paris me escrevia: “As notícias que você dá do país não são muito animadoras e, infelizmente, você tem razão de fazer uma comparação com a Europa, de qualquer modo com a França (eu falava do racismo explícito manifestado no período eleitoral aqui). Há uma subida do conservadorismo e da xenofobia, pessoas se tornam obtusas e agressivas. Por exemplo, um aluno do meu liceu e seu pai foram agredidos no seu carro e acabaram no hospital. A única  coisa da qual se lembram antes da agressão é a pergunta: ‘você é de onde?’”.

*Da coluna de Merval Pereira, no O Globo, dia 08/01/2015.

Ilustração:  ©Claudius Ceccon, captada da internet.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.